terça-feira, 30 de março de 2010

Mitos capitalistas: 1- A origem do capital



Vamos começar a série dos mitos capitalistas. Ideias que são difundidas todos os dias, de várias maneiras e que vão formando o que chamam de “senso comum” de uma sociedade. E o senso comum é muitas vezes responsável pela difusão de preconceitos, violências e obscuridades. Na visão de Gramsci, o senso comum impregna as concepções de mundo das classes subalternas e auxiliares. Mas isso é uma outra história, que discutiremos em outra ocasião.

Um dos mitos difundidos pelos apologistas da ordem social do capital é sobre a origem do mesmo. E muita gente da chamada “classe média” embarca nesse mito, sonhando em um dia “chegar lá”, ou seja, depois de dar uma casa própria para seus pais, montar seu próprio negócio e descer a martelada na cabeça da classe trabalhadora. Tudo isso com muito esforço e sacrifício, lógico! O historiador Pierre Vilar já escreveu sobre isso e fez observações irônicas a respeito do mito da origem.

Os economistas burgueses, ao fazerem do capital a origem da produção, viam-se com dificuldades para explicar por sua vez, a origem do capital. Marx ridicularizou esta evasiva diante do “pecado original” e sua idílica explicação a partir do espírito perdulário dos maus. Max Weber, ao atribuir este espírito de poupança ao protestantismo, não fez mais que somar um novo mito à velha fábula apologética.[1]   

E olha que o Pierre Vilar não assistiu aos telejornais da Rede Globo e seus congêneres, não acessou as propagandas do Sebrae e seus cursos de empreendorismo e as “fórmulas de sucesso” daqueles que ficaram ricos com seu “esforço próprio”...  

É, prezado leitor. Você sabe bem do que eu estou falando. Nessa versão empobrecida da origem do capital, feita pela mídia tupiniquim, a riqueza capitalista teria origem no esforço, no espírito de poupança, na capacidade de inovar e acumular prosperidade por parte de alguns. Esses alguns são chamados de empreendedores. Mas temos que entender, afinal, o que eles querem é incutir o tal senso comum! Se você fizer uma busca de imagens no Google e colocar a palavra “empreendedor”, entre outras aparece esta imagem




Na verdade, o sentido que dão à palavra empreendedor é o que nós historiadores chamamos de exploradores, ou como diz Ellen Wood, empregadores de mão-de-obra[2]Mas o xis da questão é: como surgiram os empreendedores? Na explicação vulgar difundida por aí, foi o “espírito de poupança”, a combinação da prudência com o risco, que fizeram de alguns, os empreendedores. Quem não teve isso ficou como colaborador...

(Colaboradores são os explorados. Ou a classe trabalhadora, se você preferir. Mas eles chamam-nos de colaboradores)
Usando o mesmo método google:



Assim sendo, o mundo era repleto de colaboradores. Entre eles, surgiram aqueles que com seu espírito de poupança, iniciativa, inteligência e esforço, acumularam dinheiro e aí ficaram ricos, viraram empresários e assim nasceu o capitalismo. O capital como fruto do esforço individual e da capacidade. Que bonito, não é mesmo? É o que o professor Maurice Dobb criticou quando chamou esta versão de “história da perene ascensao da classe média”.


O nosso amigo Karl Marx, tantas vezes repudiado, atacado, perseguido e com suas ideias declaradas “mortas e sepultadas”, analisou e realmente ridicularizou essa maneira de explicar a origem do capital, que deu no advento do modo de produção capitalista. 


Na magistral obra O Capital, Marx dedicou um capítulo especial ao tema. No Livro 1, volume 2 de O Capital, o capítulo de número XXIV tem o singelo nome de A chamada Acumulação Primitiva. E o primeiro subtítulo é exatamente “O segredo da acumulação primitiva”. Me permita essa citação um pouco extensa, mas incisiva, de Karl Marx (os grifos em negrito são meus):

Vimos como o dinheiro se transforma em capital, como se produz mais valia com capital, e mais capital com mais valia. Mas, a acumulação do capital pressupõe a mais valia, a mais valia a produção capitalista, e esta a existência de grandes quantidades de capital e de força de trabalho nas mãos dos produtores de mercadorias. Todo esse movimento tem assim a aparência de um círculo vicioso do qual só poderemos escapar admitindo uma acumulação primitiva, anterior à acumulação capitalista (“previous accumulation”, segundo Adam Smith), uma acumulação que não decorre do modo capitalista de produção, mas é seu ponto de partida.   
Essa acumulação primitiva desempenha na economia política um papel análogo do do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, por isso o pecado contaminou a humanidade inteira. Pretende-se explicar a origem da acumulação por meio de uma estória ocorrida em passado distante. Havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies de gente: uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo econômica, e uma população constituída de vadios, trapalhões que gastavam mais do que tinham. A lenda teológica conta-nos que o homem foi condenado a comer o pão com o suor de seu rosto. Mas, a lenda econômica explica-nos o motivo porque existem pessoas que escapam a esse mandamento divino. Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas e a população vadia ficou finalmente sem ter outra coisa para vender além da própria pele. Temos aí o pecado original da economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem para vender a própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos, embora tenham esses poucos parado de trabalhar há muito tempo. Thiers, como toda a untosidade presidencial, defende a propriedade, servindo aos franceses, outrora tão espirituosos, essas puerilidades insulsas. Mas, quando está em jogo a questão da propriedade torna-se dever sagrado a defesa intransigente da doutrina infantil do abecedário capitalista, como a única legítima para todas as idades e para todos os estágios do desenvolvimento. É sabido o grande papel desempenhado na verdadeira história pela conquista, pela escravização, pela rapina e pelo assassinato, em suma, pela violência. Na suave economia política o idílio reina desde os primórdios. Desde o início da humanidade, o direito e o trabalho são os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se naturalmente o ano corrente. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva nada tem de idílicos.[3]


E não tiveram mesmo. Expropriação e proletarização de camponeses na Inglaterra durante a Idade Moderna; a ruína das corporações e do trabalho artesanal, substituído pela manufatura e o controle do capital sobre a produção; as mudanças no campo, com a dissolução dos entraves feudais e a privatização das terras; a colonização das Américas, da Ásia e da África; a especulação financeira, a usura, o açambarcamento, a especulação comercial, tudo isso contribuiu para a acumulação primitiva de capital.


Onde foi parar o ouro retirado das Minas Gerais durante o período colonial brasileiro, que custou a vida de milhares de escravos? Todos nós sabemos. E isso não tem nada de “espírito de empreendedorismo”.




Eu que não sou empreendedor e nem tenho compromisso com a ordem social do capital, espero que com essa postagem tenha contribuído para que você procure nas referências, ler mais sobre este assunto. E não entre na conversa fiada das revistas, telejornais e programas televisivos da grande mídia que vendem todos os dias a promessa do paraíso capitalista ao alcance de todos. Ou quase todos. O que não faltam são livros de auto-ajuda para que você chegue lá. 

Espero que você não entre nessa.                             


[1] VILAR, Pierre. A transição do feudalismo ao capitalismo.In: SANTIAGO, Theo. Do feudalismo ao capitalismo: uma discussão histórica/ organização e introdução. – 9ed. – São Paulo: Contexto, 2003, p. 41.
[2] WOOD, Ellen Meiksins. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.    
[3] MARX, KARL. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro Primeiro – O processo de Produção do Capital, v. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, p. 828-829.  

2 comentários:

  1. Que aula, hein Darlan! Excelente texto.
    A merda é que a gente de vez em quando se pega fazendo dos outros escadas.

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  2. É isso aí, Salatiel.
    Abraço.

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