sexta-feira, 9 de abril de 2010

Chumbrega

Chumbrega vendia uma cachacinha a granel em Matozinho. Comprava em alguns alambiques da redondeza, engarrafava, após hidratá-la um pouco para aumentar o volume e o lucro, e distribuía bodega a bodega, meio às escondidas. Comerciante de parcos recursos, não tinha nenhuma condição de selar os vasilhames, já que isso significava recolhimento de imposto. O negócio funcionava como uma espécie de contravenção. Algumas vezes fora pego de calças curtas, multado e tivera a carga apreendida. Continuava , porém na luta, já que não tinha outro meio de vida às mãos e, também, com o tempo, viciou-se a driblar os fiscais, a dobrar a esquina, a esconder-se à aproximação do fisco. Aquilo se tornara uma espécie de esporte e punha um pouco de adrenalina no dia-a-dia repetitivo de Chumbrega. Vidinha de esforços desde a pobre infância, cujo fardo se foi tornando mais pesado com o passar dos anos. Casara por volta dos vinte e os filhos se foram enfileirando casa a dentro: oito. D. Ritinha, a sua companheira, viera ,como ele, da manjedoura. E sem o incenso a mirra ... e o ouro? Nem pensar! Afeita aos trabalhos domésticos, a esposa tinha uma enorme empresa para administrar, com muitos funcionários: parca em recursos e rica em problemas. O casal tocava com maestria aquela vida de pobre... e administrar miséria não é obra para principiantes. Carece de técnicas de mágico e artes de contorcionista.
Ritinha se lhe fizera a esposa ideal. Trabalhadora, controlada, sistemática, fazia render cada centavo do pouco dinheiro arrecadado por Chumbrega. Os filhos, como um general para o batalhão, mantinham-os debaixo de ordens. Havia apenas um entrave no relacionamento dos dois. Ritinha , por trás da carapaça de durona, sempre fora muito nervosa. Queixava-se de muitas doenças e dores as mais variadas. E mais, absorvia, como uma esponja, as moléstias de todos : vizinhos, amigos, atores da televisão. Bastava a notícia que alguém morrera tuberculoso em São Paulo que, na mesma hora, Ritinha já começava a tossir e a definhar. E esta mania, com a sucessão dos anos, se foi acentuando. Tanto e tanto que aquilo terminou por somar quilos no fardo já quase insuportável do nosso varejista de aguardente. Chumbrega passou a ter uma vida mais reclusa e já não transparecia a alegria , mesmo contida, de outros tempos.
Já sessentão, um dia, a mola pareceu ter esticado até o limite. Chumbrega caiu doente , queixava-se de uma infinidade de infortúnios e quase já não saía com sua carrocinha para a distribuição das garrafas. Os vizinhos entenderam que nosso comerciante entrara na curva descendente da vida e, como um estrela cadente, parecia já ter se consumido no último brilho. Aguardavam, a qualquer momento, uma notícia catastrófica sobre ele. O tempo, no entanto, é mestre em armar emboscadas nas esquinas da existência. Pois a velha da foiçona lançou sua lâmina onde não se esperava. As queixas mil de Ritinha, durante toda a vida, vai ver que tinham lá suas razões. Um dia ela dormiu na terra e acordou no céu. Tivera apenas um pequeno mal estar na noite anterior. Chumbrega lhe preparara um chazinho de jalapa e imaginou que tudo estaria resolvido no dia seguinte. Que nada! O mundo de Chumbrega veio abaixo. Perdera a companheira de tantos e tantos anos e lá ficava ele com uma récua de filhos já graúdos, é certo, mas que, como sempre, nunca param de dar trabalho. Além do mais, com saúde abalada já há vários anos, como enfrentaria os novos desafios?
Imaginou-se que em poucos meses Ritinha não estaria só na cova. Ao contrário do que toda Matozinho esperava, passado o luto oficial de trinta dias, aconteceu com Chumbrega uma ressurreição. Criou alma nova, deixou as queixas de lado, empenhou-se no trabalho com o vigor dos primeiros anos. Passou a cuidar mais do visual, embebeu-se de extratos novos e começou a freqüentar algumas festinhas. Percebia-se, claramente, que Ritinha, nos últimos anos , funcionara como um parasito, sugando-lhe a seiva vital . Agora, já sem o parasitismo, ele florescera como um marmeleiro seco com as primeiras chuvas.
Mal completara seis meses de viuvez, o coração de Chumbrega, que antes dera sinais de entupição no carburador e folga no virabrequim, engatou, novamente, a primeira. Começou a namorar uma vendedora de feira, vinte anos mais nova. Doninha , como era conhecida, era voluntariosa, despachada e não tinha as prendas domésticas de Ritinha. As más línguas diziam que seu taxímetro já tinha virado a bandeirada umas duas ou três vezes. Juntaram os panos de bunda, antes do natal.
A princípio, o relacionamento parece ter andado bem, tangido pelo cheiro de carne nova e pelo mel da lua que, percebeu Chumbrega, já estava mais para quarto minguante que para cheia. Ardido o primeiro fogo, começaram a aparecer , como sempre, os primeiros defeitos de lado a lado. Doninha não se adaptara bem no comando da tropa taluda deixada por Ritinha. Era mais independente do que o marido esperava. Viajava para feiras nas cidades vizinhas e nem todo dia dormia em casa. O esposo teve que, assim, compartilhar com ela afazeres totalmente estranhos: cozinhar, passar, lavar prato. Doninha, por outro lado, acostumara-se a uma variedade maior de parceiros, mais novos e fogosos e , rápido, enfastiou-se daquele repetitivo prato de todo dia.
Passados uns dois anos, Chumbrega começou novamente a ficar capiongo, meio borocoxô. Alguns diziam que talvez fosse o peso de umas antenas novas da Sky que Doninha parecia estar comprando para ele. Caiu adoentado, voltou à reclusão e não queria conversa com ninguém. Os que já o conheciam de longa data imaginaram que aquilo era uma fase, pois a vida é tecida assim mesmo entre vales e depressões. Matozinho se surpreendeu, pois, quando recebeu a notícia : Chumbrega dormira no domingo com as queixas de sempre e, na segunda feira, quando Doninha foi chamá-lo descobriu que já não morava nesta dimensão .
À noite, no velório, uma Doninha chorosa, entre um e outro soluço, explicava o inexplicável. Antes de dormir, Chumbrega lhe pedira um copo de leite quente. Queixou-se de azia e acreditava que tinha sido uma tapioca que comera no jantar. Ela, cuidadosamente lhe preparou e ele tomou tudo: glute-glute-glute. Quando uma vizinha lhe perguntou se depois disso ele não se tinha queixado de mais nada, Doninha , entre lágrimas concluiu;
--- Não, ele não se lamentou de mais nada. Acho que a azia passou! Até porque eu coloquei no leite um pouco de um chá de jalapa que ele tinha preparado prá mim ontem e que eu , morrendo de sono, terminei me esquecendo de tomar...

J. Flávio Vieira

9 comentários:

  1. Muito legal o texto. Parabéns!

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  2. Zé acaba de postar uma das melhores passagens de Matosinho. Isso não é possível de imitar, é original demais, é do autor como o céu é do condor.

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  3. Zé,
    Vamos colocar aquela idéia da série Matozinho pra frente?

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  4. "glute, glute, glute..."
    Li de três goles.
    (com pausas para boas risadas)

    Forte abraço,
    meu camarada.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Agradeço ao Darlan, ao Zé do Vale,Ao Zé do Vale, ao Domingos pela leitura do catatau. e pelos elogios. Salatiel, vamos lá, rapaz! Vamos conversar com o jefferson e vê se a gente organiza.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Zè Flávio
    Achei o texto muito divertido e um final rocambolesco digno de um Romeu e Julieta sertanejo.

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  9. abraço ao Maurício pela paciência em ler essas potocas de fim de semana e pelos comentários.

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