ANTONIO CICERO
A ideologia marxista hoje
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Hoje, nem os marxistas podem pretender saber como seria a superação do capitalismo
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JÁ CITEI uma vez, nesta coluna, a observação do filósofo Theodor Adorno no ensaio "As Estrelas Descem à Terra" de que, ao semierudito, "a astrologia [...] oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais supõe pertencer a uma minoria que está "por dentro'". Na época, mostrei que tal descrição convém também à ideologia religiosa do apóstolo Paulo, assim como à de Martinho Lutero. Pois bem, o fato é que ela se aplica igualmente bem a ideologias seculares, tais como o marxismo vulgar.
Embora tencione dar uma chave para o entendimento do mundo, como uma religião, o marxismo, longe de se tomar como religião, considera-se inteiramente racional, declarando-se tanto filosofia quanto ciência da história e da sociedade. Isso faculta ao semierudito ter-se, do ponto de vista cognitivo, como superior também aos eruditos que, por diferentes razões, não tenham adotado a concepção marxista.
Como, além disso, essa concepção do mundo quer fundamentar uma teoria revolucionária, tendo em vista a superação do capitalismo e a instauração do comunismo, sociedade em que pretende que não haverá mais propriedade privada dos meios de produção, nem diferentes classes sociais nem os flagelos da exploração e da opressão do ser humano pelo ser humano, os marxistas, já pelo simples fato de se posicionarem a favor de tal revolução, consideram-se, a priori, superiores, também do ponto de vista ético, a todos que não o tenham feito.
Para esse modo de pensar, o mundo existente, em que domina o modo de produção capitalista, é inteiramente desvalorizado. Nele, qualquer progresso é tido como meramente adjetivo, quando não fictício. A democracia existente -qualificada de "burguesa"- não é valorizada senão enquanto caminho para a revolução. Só esta deverá trazer um progresso real.
Hoje, porém, nem os marxistas podem pretender saber como se daria a superação do capitalismo. Não ignoro que, se questionados, certamente falariam em "socialismo". Concretamente, porém, que poderia significar para eles tal palavra?
Seu socialismo certamente nada teria a ver com a social-democracia, pois esta, sendo compatível com o capitalismo, não representaria sua superação. Tratar-se-ia então do socialismo como a estatização dos meios de produção, tal como se deu, por exemplo, na URSS?
Tomando a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista, pretenso representante do proletariado, como a propriedade social dos meios de produção, os revolucionários russos supuseram que já haviam deixado para trás o modo de produção capitalista.
Será possível identificar a estatização com o socialismo? Friedrich Engels diria que não, pois afirmava que "quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tantos mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada, a relação capitalista chega ao auge". Dado que a propriedade estatal dos meios de produção não garante a posse real deles pelos trabalhadores, ela é capaz de não passar de uma forma de capitalismo estatal.
A Revolução Cultural Chinesa pode ser entendida como uma tentativa de mobilizar as massas contra o estabelecimento de situação semelhante, na China. Seu líder, Mao Tse-tung, chegou a dizer: "Não se sabe onde está a burguesia? Mas ela está no Partido Comunista!".
É possível. Como, porém, a verdade é que as "massas" são inerentemente plurais, particulares, instáveis e manobráveis, o fato é que, na época moderna, qualquer "democracia direta" não pode passar de uma quimera. Não admira, portanto, que a Revolução Cultural se tenha tornado extremamente caótica e violenta, de modo que, por fim, tenha sido necessário, ainda nas palavras de Badiou, "restabelecer a ordem nas piores condições". O resultado é que impera hoje na China o mais brutal capitalismo, tanto estatal quanto privado.
Contudo, só a miopia ideológica impede de ver que, embora a "revolução" se tenha revelado um beco sem saída, o mundo em que vivemos encontra-se em fluxo incessante; e que a sociedade aberta, os direitos humanos, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a autonomia da arte e da ciência etc. -que constituem exigências inegociáveis da crítica, isto é, da razão- constituem também as verdadeiras condições para torná-lo melhor.
FSP de 01 de maio de 2010
Não vejo assim. Os marxistas não se consideram superiores "a priori".
ResponderExcluirIsso é uma acusação e uma simplificação.
Darlan
ResponderExcluirAcho que Antonio Cícero toca num ponto bem interessante . Uma certa "esquerda" marxista se acha acima do bem e do mal por defender uma causa nobre: o fim da desigualdade social promovida pelo capitalismo. E os Estados que restaram que se dizem seguidores do pensamento marxista são péssimos exemplos de modelo de sociedade. Da China nem é preciso falar mas a falta de liberdade de expressão em Cuba, entre outras coisas, me deixa bastante envergonhado. Não quero cair aqui no eterno jogo comparativo, apenas não reconheço nessas sociedades um modelo digno de aplicação. Continuo mantendo meus ideais igualitários mas cada dia menos convicto da vontade dos homens de estabelecer uma sociedade realmente sem exploração. E, por favo, não me coloque no balaio dos defensores de Boris Casoy. Abraço.
Maurício,
ResponderExcluirNão coloquei você no balaio de ninguém.
Apenas li um texto opinativo.
E dei uma opinião.
Tem todo tipo de marxista. Ou que se diz.
O texto fala dos marxistas. Sei que tem uma "certa esquerda" assim, mas os marxistas a priori?
Pessoas como Eric Hobsbawm, Edward Thompson, Chomsky e outros não se sentem superiores "a priori". E nem o comandante Fidel Castro.
O que eu não entendi é você pensar que o coloquei no mesmo balaio dos defensores do Bóris Casoy? Não mesmo.
E sobre os modelos e propostas para acabar com a desigualdade social, respeito sua posição. Eu acho que ainda dá para acabar com a desigualdade social e manter o respeito pelas diferenças!
Abraço.
Darlan
ResponderExcluirO negócio do balaio de Bóris foi uma ironia preventiva para lembrar que não concordar com o regime de Cuba não significa que também ache Boris Casoy, um velho conservador que mostrou sua cara destilando seu preconceito contra os garis, uma figura admirável. É difícil, em poucas linhas,explicar o que se pensa do panorama político atual. Mas tento ser independente mesmo correndo o risco de mal entendidos. E acho que A.Cícero não está criticando os grandes nomes do marxismo que você citou. Ele tenta traçar um perfil de pessoas que fazem do marxismo uma religião (e uma religião científica, acima de qualquer controvérsia)e tapam os olhos para certas iniquidades feitas em seu nome. abraço.
maurício,nas minhas buscas por frases para meus cartuns achei esta:"o socialismo foi a utopia mais maravilhosa da cultura ocidental.imagine o que é a vontade espontânea de sacrificar os interesses próprios pelo interesse coletivo",hans ulrich gumbrecht.
ResponderExcluirJoão
ResponderExcluirAdorei a frase. Esse conflito entre interesse pessoal e interesse coletivo sempre é mascarado com muita hipocrisia.
Paz, pão e terra.
ResponderExcluirE o Bóris que fique com a turma dele...
ResponderExcluirMaurício,
ResponderExcluirDe uma maneira simplificada, socialista é o cara que pretende dividir a riqueza... dos outros, enquanto a sua permanece intacta.
Abraço.
Oi, Geraldo
ResponderExcluirComo Anne Frank ("apesar de tudo eu acredito na bondade humana") ainda tem uma parte de mim que ainda acredita em pessoas (e ideologias) de boas intenções. Sei que não temos muitos bons exemplos para copiar mas alguns grupos (sem governo por trás) conseguem , não sei por quanto tempo, manter uma vida comunitária baseada na igualdade de princípios, direitos e deveres. Talvez seja preciso voltar sempre aos anarquistas :"Hay gobierno, entonces soy contra". Abraço.