segunda-feira, 10 de maio de 2010

Paulo Francis, dez anos depois


“Não sou antinada, só anti-burrice’’.
Paulo Francis (1930-1997)


Máximo Gorky escreveu belo ensaio sobre as influências que nos moldam intelectualmente além do ensino acadêmico: ‘’Minhas Universidades’’, tratando de pessoas e livros que induzem culturalmente ao gosto pela Arte e o Pensamento. Paulo Francis foi uma dessas minhas universidades, só igualado à Haroldo de Campos noutra esfera. Comecei lê-lo muito cedo ainda na ‘Folha’, no ‘Estado’ e ultimamente colaborando na ‘A Tribuna’ de Santos. Entre os anos 80 até sua morte, Francis fazia parte do cotidiano: era mágico um colunista iconoclasta discorrer sobre ópera, ballet, a ‘nouvelle vague’, revelar-me Edmund Wilson e Faulkner, críticar o teatro brasileiro e shakesperiano , tudo dito com desprendimento dum boêmio carioca vivendo em New York. Gênio, era ideologicamente errático, tinha glamourosa arrogância de quem calcula excessos de opinião para desfazer certezas, demolir ortodoxias e não incorrer no lugar comum. ‘’Mudo muito de opinião, quem não muda é cretino.’’ Essa frase é luva ao ex-trotskista encantado com possibilidades do capitalismo: Francis teve a constância da inquietude, só não transigia em Cultura, paixão literária e na força de ultrapassar imediatismos do jornalismo . Retomando os ‘’Diários da Corte’’ que conservo em fascículos releio textos nada datados, comentários sobre Política e Comportamento que parecem desse verão-2007. Francis é retrato de 40 anos do século XX: desde ‘’Diário Carioca’’ até a persona televisiva do ‘’Manhattan Connection’’; romancista frustrado, foi ‘cult’ dos cronistas. Chegou usufruir dos primeiros efeitos da globalização sócio-econômica e Internet, mas não sei como veria a continuação da História sob a sombra do Terror, de Bush e Chavez. Os frutos do neoliberalismo soariam-lhe amargos e imagino que sua dialética originalíssima não resistiria a nova revisão. Numa sociedade carcomida pela cultura de massa e diante da crescente infantilização de mentalidades, Paulo Francis se refugiaria em Wagner, Billie Holiday, Balanchine ou Albee: quem sabe não tenha se tornado o fantasma do City Ballet ou entre telas de Matisse no MoMa? Há um dilema recorrente em Arte: o que vai ficar? ouvindo Stravinski ou lendo Tolstoi , Francis dizia: ‘’Pode-se escutar e ler mil vezes, sem cansar, esse é o teste supremo do que fica em arte.’’ Esse aforisma é de 02/02/97 e encerra último texto digitado pelo mestre: Francis morreu fulminado entre o teclado, o acervo eclético de fitas e livros ; o ermitão cosmopolita se despedia. Francis era artesão da notícia refazendo atmosferas, estilista de esboços e memoralista fragmentário, mix de Karl Kraus e Dorothy Parker, deu relevância à polêmica, essa parteira online das vanguardas. Transcendia os periódicos : era especialista em tudo sem aferrar-se à dogmas ou cátedras. Via o mundo do alto e amplificava infindável rede de assuntos: da física quântica à um show de Madonna, nada escapava ao cúmplice da Inteligência. Lia Francis para ser influenciado, discordar e compreender sem síntese irremovível. Aprendi que único compromisso do intelectual é construir em dúvida. Francis não era um gênio criativo, mas elevou o jornalismo nacional à categoria de Literatura do agora : desconstrutor de unanimidades, cometia deliciosas bobagens e sucumbiria de tédio aos suplementos que tratam de reality-shows e futebol. Elocubro: o que Francis diria disso, desses e daquilo? Erudito do cotidiano, faz falta , mas estaria só: a solidão dos sábios é cruel desperdício. O Brasil esnoba os seus...


FRANCIS : PÉROLAS

Não tinha idade para ler Francis no ‘Pasquim’, comecei mesmo já na ‘Folha’. Obviamente indignava chamar gays de ‘invertidos’, suas gozações com Suplicy e Erundina eram abomináveis, não lembro de Francis citando poesia brasileira e creio ele não ter entendido perfeitamente obras das vanguardas brasileiras: do mesmo modo que torcia o nariz para ‘noveau roman’, não assimilava os concretistas e Clarice Lispector. Francis era bem produto dum Brasil que se industrializava e da primeira geração que cresceu sob influência da América vitoriosa: o jazz, a bossa novaiorquina, o jornalismo ágil, a cultura não-uspiana, a liberação hetero, o escárnio aos babyboomers e uma reação cínica ao pós-68 são bem a marca de quem lia Somerset Maugham , curtia os irmãos Marx ao mesmo tempo que orientava-se pelos experimentos ‘entronizados’: em literatura parou em James Joyce (o que já é ótimo!) e em música desdenhava Schoenberg até por falta de aporte técnico.

Francis ‘chutava’ muito culturalmente: era capaz de discorrer sem entender ‘bolhufas’ sobre John Cage ou Yourcenar. Era duma livre-escola que primava pela voracidade e não pela intelecção: jamais citaria Deleuze num artigo, preferindo discorrer apartir de Montaigne ou o velho Marx que nunca rejeitou completamente. A reunião de Daniel Piza para o ‘pensamento’ de Francis é um apanhado delicioso para reavivar o entendimento de seu legado. ‘’Waaal’ é remédio anti-monotonia: percorrer seus verbetes ou jornais amarelados é prá mim o que Fred Astaire ou Peter Sellers eram prá Francis.

Seu legado: penso que sua influência vai até os nascidos até 1975: o que resta são pérolas que recolhemos do baú. Um Francis importante é o crítico de teatro inovador: o cultuador de Ziembinski e Nelson Rodrigues, outro é o cronista da fragmentação que se constrói numa lógica que dá liga aos que seguem sua trajetória no instante da observação. Jornalismo é inteligência assumidamente sem pretensão: um saber que se liquida. Francis fixou-se na ‘retina mental’: agora são móbiles no meu glossário existencial. O que se leu muito é existência de dentro afinal...



Frases

"Só acredito em iconoclastas que saibam construir estátuas, e Caetano sabe’’. – elogio antes do rompimento.

"Essa é a mentalidade dominante: ninguém lê mais nada, ninguém se interessa por mais nada. Todos agem como derrotados. Como a cultura pode prestar?
Não podemos desistir da cultura. Temos de lutar pela cultura, até porque a cultura é que vai nos explicar."

"Penso também em um escritor como Raul Pompéia. Quem ainda lê ‘O Ateneu’ , um dos mais romances brasileiros mais importantes deste século?"

"Sei que é meio chocante o que eu vou dizer, mas eu prefiro a solidão dos livros ao contato com as pessoas. As relações humanas são sempre complicadas, não importa se com homens ou mulheres. Sei que é desagradável dizer, mas eu prefiro os livros às pessoas. Eu sou um homem tímido. Eu sempre fui um esteta.’’

"A TV é , mesmo, o ‘Country Club’ dos pobres.’’

[trechos de entrevista à José Castello publicada no Estadão de 18/ 08/ 96]

"Saddam é um genocida, um ditador... Os EUA estão lá por causa do óleo. É verdade, e tem o apoio de todas as pessoas sensatas (...) dependemos dos EUA para a defesa dos nossos interesses mais básicos, apesar do ódio malsão, puramente patológico, que o nacionalismo-esquerdóide tem dos americanos. Nem por isso deixo de achar nojenta a banda de música pró-EUA no Golfo, que vejo na mídia aqui. Acho que deveria haver mais crítica, mais discernimento do que está em jogo.’’
["Diário da Corte’’ , 1/12/ 90 – ‘’Folha’’, véspera da primeira Guerra do Golfo ]

‘’O perigo de Bush é o sucessor-candidato republicano. Mas ficará para 1996, à beira do milênio ou eleito em 2000. Quem sabe o mundo acaba antes? ‘’
["Diário da Corte’’ , 3/05/92, ano da eleição de Bill Clinton sobre Bush-pai]

Bush filho seria eleito em 2.000, Francis morreria antes do milênio e o mundo ainda não acabou.

"Dizem que ofendo as pessoas. É um erro. Trato as pessoas como adultas. Critico-as. Crítica não é raiva. E crítica , às vezes, é estúpida." seria um epitáfio adequado. Sinto falta de Francis: mas ainda tenho Gore Vidal, esse mais próprio à minha visão de mundo e preferências estéticas.



Flávio Viegas Amoreira, escritor, poeta e ensaísta; já lançou 4 livros pela 7 Letras e em abril estréia em romance com ‘’Edoardo, o Ele de Nós’’. E-mail: flavioamoreira@uol.com.br

2 comentários:

  1. Zé Flávio também sinto falta de Francis embora não concordasse com tudo que ele dizia. Também gosto muito de Gore Vidal mas o seu aprendiz brasileiro, Diogo Mainardi, acerta bem menos. Abraço

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  2. Maurício,

    O Paulo Francis era aquela figura que a gente conseguia detestar mas não deixava de ler. Polêmico, às vezes insuportável em algns comentários, mas um agitador sem igual. Ele faz falta, o Mainardi é um grão-fino que tenta ser um genérico do Frnacis mas falta-lhe a inteligência e a argúcia.

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