quarta-feira, 26 de maio de 2010

Tens o relógio e eu tenho o tempo - entrevista com MOUSSA AG ASSARID, realizada por VÍCTOR-M. AMELA

Não acredito numa ordem que perfile todos os fatos. Alguns guardam íntima relação entre si, inclusive de causa e efeito. Mas as coisas, com alguma frequência, se ordenam apenas pela nossa atenção sobre determinadas questões, até mesmo porque estão presentes quando as buscamos. Foi assim que no mesmo momento que postei o resumo do pensamento verde socialista, recebi um PPS que era uma entrevista com um Tuareg que cursa universidade na França.

A tradução do cosmo que este Tuareg nos apresenta, embora num estágio diferente de uma cultura, bem demonstra o quanto a idéia de vanguarda e atraso pode ser falsa. Para os termos daquela discussão dos verdes o Tuareg tem muito o que dizer. O entrevistado é Moussa AG Assarid e foi dada ao jornalista, escritor e comentarista Victor M. Amela.

Aconselho a leitura do post inteiro, pois mesmo para idéias que pretendem revolucionar toda a Civilização, sempre tem como núcleo central o humano e seu legítimo encontro com a felicidade. O único medo possível não é o do movimento é o atoleiro em que todas as coisas apenas afundem.

Eis a entrevista:

Não sei a minha idade: nasci no Deserto do Saara, sem certidões...! Em um acampamento nômade Tuareg entre Tumbuctu e Gao, ao norte do Mali. Tenho sido pastor de camelos, cabras, ovelhas e vacas de meu pai. Hoje estudo Gestão na Universidad Montpellier. Sou solteiro. Defendo os pastores Tuareg. Sou muçulmano sem fanatismo.

- ¡Que turbante tão bonito…!

- É uma fina tela de algodão: permite proteger o rosto no deserto quando se levanta areia, e seguir vendo e respirando através dele. É de um azul belíssimo…. Aos Tuareg nos chamam os homens azuis por isto: a tela solta algo e nossa pele se toma de tons azulados...

- Como elaboram este intenso azul anil?

- Com uma planta chamada índigo, misturada com outros pigmentos naturais. O azul, para os Tuareg, é a cor do mundo.

- Por quê?

- É a cor dominante: do céu, do teto de nossas casas.

- Quem são os tuareg?

- Tuareg significa “abandonados”, porque somos um velho povo nômade do deserto, solitário, orgulhoso: “Senhores do Deserto”, nos chamam. Nossa etnia é a amazigh (berbere), e nosso alfabeto, o tifinagh.

- Quantos são?

- Uns três milhões, e a maioria, todavia, é nômade. Porém a população decresce... “ É preciso que um povo desapareça para que saibamos que existia, denunciava um vez um sábio: eu luto para preservar este povo.

- A que se dedicam?

- Pastoreamos rebanhos de camelos, cabras, ovelhas, vacas e jumentos num reino de infinito y de silencio…

- De verdade tão silencioso é o deserto?

- Sim estás a só naquele silencio, ouves as batidas de tu próprio coração. No há melhor lugar para se achar sozinho.

- Que recordações de tua infância no deserto conservas com maior nitidez?

- Meu despertar com o sol. Ali estavam as cabras de meu padre. Elas nos dão leite e carne, nós as levamos aonde há água e pastagem… Assim fez meu bisavô, e meu avô, e meu pai… E eu. Não havia outra coisa a mais no mundo do que isso. E eu era muito feliz nele!

- Sim! Não parece muito estimulante. ..

- Muito.. Aos sete anos já te deixam apartado do acampamento, para o que te ensinam as coisas importantes: a farejar o ar, escutar, apurar a vista, orientar-se pelo sol e as estrelas… E a deixar-se levar pelo camelo, se te perdes: te levará aonde há água. Saber isso é valioso, sem dúvida… Ali todo é simples e profundo. Há poucas coisas, e cada uma tem um enorme valor!

- Então este mundo y aquele são muito diferentes, não?

- Ali, cada pequena coisa proporciona felicidade. Cada roçar é valioso. Sentimos uma enorme alegria pelo simples fato de nos tocarmos, de estar juntos! Ali nada sonha em chegar a ser, porque cada um já o é!

- O que mais chocou em tua primeira viagem a Europa?

- Vi correr as pessoas pelo aeroporto.. . No deserto só se corre si vem uma tormenta de areia! Assustei-me, claro…

- Só iam buscar as malas, já, já…

- Sim, era isso. Também vi cartazes de mulheres desnudas: por que essa falta de respeito com as mulheres? Perguntei-me… Depois, no hotel Ibis, vi a primeira torneira de minha vida: vi correr a água…. e senti vontade de chorar..

- Que abundancia, que desperdício, não?

- Todos os dias de minha vida haviam consistido em procurar água! Quando vejo as fontes ornamentais aqui e acolá continuo sentindo dentro uma dor tão imensa….

- Tanto assim?

- Sim. A principio dos 90 houve uma grande seca, morreram os animais, caímos enfermos…. Eu tinha uns doze anos, e minha mãe morreu… Ela era tudo para mim! Me contava histórias e me ensinou a contar-las bem. Ensinou-me a ser eu mesmo.

- Que aconteceu com sua família?

- Convenci a meu pai de que me deixasse ir à escola. Quase todos os dias eu caminhava quinze quilômetros. Até que o professore me deixou uma cama para dormir, e uma senhora me dava de comer ao passar ante a sua casa…. Entendi: minha madre estava ajudando-me...

- De onde saiu essa paixão pela escola?

- Dois anos antes havia passado pelo acampamento o rali Paris-Dakar e uma jornalista deixou cair um livro de sua mochila. O recolhi e a dei. Presenteou-me e me falou daquele livro: O Pequeno Príncipe. E eu me prometi que um dia seria capaz de lê-lo….

- E o logrou.

- Sim. E assim foi como logrei uma bolsa para estudar na França.

- Um Tuareg na universidade ..!

- Ah, o que mais me falta aqui é o leite de camela… E o fogo a lenha. E caminhar descalço sobre a areia quente. E as estrelas: lá as miramos cada noite, e cada estrela é distinta de outra, como é distinta cada cabra… Aqui, pela noite, olhas a televisão.

- Sim… Que é o pior que lhe parece aqui?

- Tendes de tudo, porém não basta. Queixai-vos. Na França passam a vida se queixando! Aprisionai-vos por toda a vida aos bancos, e há ânsia de possuir, frenesi, pressa… No deserto não há atrasos, e sabe por quê? Porque ali nada quer se adiantar a nada.

- Conta-me um momento de felicidade intensa em distante deserto.

- É cada dia, duas horas antes do pôr do sol: diminui o calor, e o frio não chegou ainda, e homens e animais regressam lentamente ao acampamento e seus perfis se recortam no céu rosa, azul, roxo, amarelo, verde…

- Fascinante, na verdade…

- É um momento mágico…. Entramos todos na tenda e pomos o chá no fogo. Sentados, em silencio, escutamos a fervura… A calma nos invade a todos: as batidas do coração entram no compasso, no pot-pot dp fervor...

- Que paz…

- Aqui tens o relógio, ali temos o tempo.

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