quinta-feira, 17 de junho de 2010

Jabulani


O futebol não é uma questão de vida ou de morte.
É muito mais importante que isso...
Bill Shankly



Pois é, amigos ! Imaginem o desespero de um escritorzinho rabo de galo, que se senta às quintas-feiras , para escrever seu texto semanal, em tempos de plena Copa do Mundo de Futebol ! Quando nem Paulo Coelho, com sua mandinga , seu feitiço e suas receitas de bolo fofo, consegue leitores fiéis ! Enquanto teclo, três partidas internacionais vão se desenrolando e os noticiários cospem, a cada minuto, informações sobre a nossa Seleção Canarinha que não têm fôlego para Campeonato de terceira divisão, mas sonha alto com o Hexa. Tudo isso no país do futebol ! Ou seja, nem o escritor assenta a cabeça para escrever o texto, nem o leitor tem miolo para preencher com qualquer outro utensílio que não seja a Jabulani. Pois bem, que jeito ? Vamos então falar do que interessa : futebol ! Já viram paixão mais arrebatadora entre os brasileiros ?
Aqui, em dia de jogo da Canarinha, nada funciona! As emergências param, os Centro Cirúrgicos fecham as portas, padre cancela missa. As ruas se vestem do verde-amarelo, cada brasileiro enverga a camisa da seleção e bandeiras tremulam em cada casa , cada esquina. No primeiro jogo do Brasil, uma colega pediatra resolveu ir ao consultório, no horário da partida, sob o pretexto de que não gostava de futebol. Teve que voltar e assistir, pacientemente, ao embate: não apareceu uma criança sequer para se consultar. Sararam, como por encanto!
Em tempos de Copa, perdemos aquele complexo de vira-lata de que falava Nélson Rodrigues; latimos alto como cão do melhor pedigree. Talvez porque, na África do Sul, nos sentimos um pouco em casa. Vendo a alegria contagiante dos sul-africanos percebemos , claramente, que à etnia afro devemos nosso despojamento, nosso espírito festeiro e dançante, nossa capacidade de vencer as adversidades : sem travo, sem amargor, sem sangue escorrendo pelas ruas. Se , como tão bem disse o Desmond Tutu na abertura, naquele momento a humanidade estava voltando para o lar, nós brasileiros, mais que ninguém, nos sentimos reintegrados à tribo Zuzu. É que estamos conseguindo, pouco a pouco, canalizar a paixão do futebol para nossas atividades mais cotidianas e o gigante vai se levantando do berço esplêndido onde ficou hibernando por tantos e tantos séculos.
No Brasil, por nossas peculiaridades, o futebol terminou virando arte: um misto de bailado, de capoeira, de ginga, de manha, de catimba. A bola, herdada do fleugmatismo inglês, aqui encontrou a liberdade nas pernas tortas de Garrincha, nos pedaladas de Robinho, na bicicleta de Leônidas. Numa nação nova, carente de heróis, o futebol nos trouxe as glórias que nos faltavam em muitas outras modalidades esportivas e sociais. Funcionou como cola, como adesivo , unificando os sonhos díspares de um país multiforme, diverso e de dimensões quase que continentais. Ofereceu-nos a primeira razão de orgulho, o seminal sentimento de identidade pátria. Talvez, por isso mesmo, o futebol tenha uma ressonância tão profunda, tão avassaladora, tão magnética nos corações dos brasileiros.
Há uns dois meses, contou-me um sobrinho que mora em Recife, faleceu um velhinho já quase nonagenário, avô de um colega seu de faculdade. A família toda era de torcedores fanáticos do Sport Clube do Recife, até porque o velho era uma dos sócios mais antigos do clube e, inclusive, fora diretor por vários anos. E o Sport em Pernambuco, amigos, representa a paixão como o Corinthians em São Paulo e o Mengão no Rio. A doença havia sido insidiosa e de muito sofrimento, de maneira que o velório estava tranqüilo, com um pesar muito bem dosado. Todos conversavam, conformados com a inevitabilidade da morte, quando de repente, a viúva, já idosa, andando com muita dificuldade, aproximou-se lentamente do caixão e colocou a bandeira do Sport por cima, numa última homenagem . Foi como se o mundo tivesse desabado ! A família irrompeu numa crise de choro convulsivo que foi difícil de controlar. Meu sobrinho foi categórico : se o Brasil ganhar o Hexa, eu acho que ele pula do caixão e se for contra a Argentina, ressuscita e sai dançando frevo pelas ruas da cidade:


“Voltei, Recife !
Foi a saudade que me trouxe
Pelo braço...”


J. Flávio Vieira

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