O HOMEM QUE SE RECORDAVA
(conto)
Tivera meningite em pequeno
- Diziam, - e porisso ficara idiota.
no entanto, não sei porque, aquele
homem interessava-me.
Todos os dias, da minha janela, eu
o via passar. Passava sem ver ninguém
ensimesmado, gesticulando a esmo.
Não falava. Porisso me espantei no
dia em que me pediu fogo para o seu
cigarro. Aquele homem excitava a
minha curiosidade. Convidei-o para
almoçar num restaurante perto.
Aceitou. Comeu pouco, sem falar.
Eu já estava desiludido de obter
qualquer coisa dele quando, à
sobremesa, me perguntou à queima-
roupa:
-O senhor acredita em metempsicose?
Esbocei um gesto de dúvida.
- Pois eu sou o homem que já teve vinte
e duas encarnações. E olhe, isto é que
é o mais estranho, recordo-me de todas.
- Então deve ter visto muita coisa
interessante.
- Alguma, alguma, . . . É verdade que
muitos fatos antigos, que hoje têm uma
importância enorme, na sua época
foram fatos banais. A História enxerga
sempre com lentes. Às vezes para
aumentar, outras para reduzir. Por
exemplo, a crucificação de Jesus Cristo.
Eu posso narrar-lha com todos os
pormenores. Era legionário romano e a
assisti. Foi uma execução como outra
qualquer. Rabbi Jeschoua bar Josepha,
nascido em Galiléia e conhecido por
Jesus e por Cristo, era um revolucionário
de talento. E paupérrimo. Não tinha
nada de seu e pregava o que hoje se
chama comunismo. As suas ideias não
incomodavam a Poncius Pilatos, o pro-
consul romano em Jerusalém, que,
olhando para nós, na torre Antonia,
tinha a certeza da força invencível
dos Césares. Mas Jesus foi um revoltoso
imprudente e um mau político.
Pregava a desistência dos bens terrenos.
Só podia interessar aos que nada
possuiam. Afirmava trazer consigo a
verdade, A verdade é lá coisa que se
pregue ? . . . Pôs contra si todos os
burgueses, expulsando os mercadores
do Templo. Ofendeu o Sanhedrim. O
resultado não podia ser outro. Naquele
dia do mes de Nizan, Jesus foi crucificado.
Foi um fato banal. Hoje, esse fato é o
alicerce de uma religião. A História usa
lentes para isso. Lá isso usa.
Fez uma pausa.
Eu, curioso, pedi-lhe:
- Conte-me mais alguns fatos das suas vidas.
- Pra quê No fundo, a Humanidade é sempre
a mesma. Eu posso falar-lhe de cadeira.
Fui escravo de Cleópatra. Vi os seus amores
com Júlio César. Vi depois os seus novos
amores com Marco Antônio. Assisti à
batalha de Actium, o suícídio de Marco
Antônio e o suicídio de Cleópatra. Fui
cavaleiro andante na Idade Média.
Pra que pormenores ? A vida é sempre
banal. Vivi em Veneza no século XII. No
século XV, fui conterrâneo dos Médicis.
No século XVIII, fui amante de Catarina
da Rússia. Duvida ? Eu fui muita coisa.
Fui escravo e fui príncipe. Fui soldado
e fui general. Conheço o mundo todo e
todas as profissões e nem porisso sou
mais feliz do que os outros.
- E nunca teve uma vida de ventura ?
- Sim, houve uma vida em que eu fui cão.
Está admirado ? Sim senhor, fui cão.
Não desses cães mimados que têm uma
dona moça e bonita que os beija, que lhes
proíbe o amor com cadelas vadias.
Dormia ao relento e roubava o que comer.
Ia para onde me dava a gana. Amava ao
ar livre e coçava as minhas pulgas com
toda a liberdade. Não tinha a quem dar
satisfação dos meus atos. Roubava o que
comer e uivava à lua. E creia, senhor, foi
essa a única encarnação em que eu fui
completamente feliz.
(DIAS DA COSTA)
Olá pessoal! muito bom este conto, depois de ter meningite é bem dificil ser normal.
ResponderExcluirMuito bem escrito.
parabéns.
pois é, silviah. e como prêmio por postar tais preciosidades, sou taxado de "repetitivo" e de outras tolices.
ResponderExcluiracabei por encher o meu saco e estou saindo do blog,
por incompreensão de alguns e trabalho das "forças ocultas".
grande abraço e obrigado pelo comentário.