terça-feira, 10 de agosto de 2010

pulpifex maximus

AUTÓPSIA


limpo com um espanador a memória de

Maria Teresa Cayetana de Silva, duquesa de Alba, enterrada no campo

de Santo Isidoro de onde foi exumada para autópsia, em 1945,

notando-se então a falta dos pés. enterraram-na vestida, e

é assim que o corpo surge, na fotografia, com a mão direita visível, e um

esgar de dor na caveira. a nudez, aqui, pertence apenas

à morte que lhe aconteceu antes dos quarenta anos - como

se a mais bela das mulheres de Espanha pudesse morrer,

de um dia para o outro, sem razão aparente. falou-se

de veneno - mas o seu veneno era outro: a beleza. nua sobre almofadas,

no quadro de Goya,

os seios apontando os horizontes do amor,

e o púbis sobressaindo de entre as coxas, na linha do

umbigo, fixa-nos com os olhos desmaiados do prazer. a mão

que se vê no túmulo, segura aqui a cabeça; e o ricto

da morte é substituído por um sorriso de lábios fechados,

num desafio a quem por ela passa, como se alguém

pudese resistir ao abismo que se abre sob o braço esquerdo, onde

ele encontra o tecido e o torso. nua e vestida,

a duquesa de Alba está inteira: e olho para os seus pés,

onde cada um dos dedos, com as unhas perfeitas, não

adivinha a mutilação póstuma, para a relíquia, ou

por simples descuido, o que não é grave: nalgum juízo

final os restos se hão-de colar, e Maria Teresa Cayetana de Silva,

restituída ao seu esplendor, se apresentará com o argumento

com que a limpo do pó dos séculos: a beleza absoluta

do seu corpo, o mais puro sinal de que

merece a eternidade.


(nuno júdice)







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