sábado, 25 de setembro de 2010

Balé

Ínvios caminhos trilhou a Medicina em terras de Santa Cruz! O primeiro médico aqui aportou ainda nas caravelas de Cabral : Johannus Emenelaus. E devemos ao holandês Guilherme Piso que veio a Pernambuco com o Conde Maurício de Nassau, no Século XVI, o primeiro Tratado de Medicina das Américas. Nosso conhecimento médico, como nossa cultura, sofreu intenso processo de miscigenação: um pouco aprendido dos portugueses, dos jesuítas, dos afro-descendentes, dos holandeses, franceses, judeus e dos índios. Nossos primeiros profissionais de médicos só começaram a ser formados por aqui a partir do Século XIX, com a inauguração da primeira Escola de Medicina, a de Salvador, que coincide com a chegada da família Real. Todos profissionais daquela geração carregavam consigo características interessantíssimas: exercendo uma ciência que ainda se banhava em fontes empíricas, tinham uma profunda formação humanística e ética no exercício da Arte hipocrática. Para eles, o exercício da medicina era antes de tudo impelida por vocação e fazia-se muito mais sacerdócio do que emprego; mais Arte do que Ciência. Tinham uma profunda proximidade com as famílias e eram reverenciados como membros delas, como um parente próximo, como um amigo. Participavam do cotidiano das pessoas e tratavam não apenas os males físicos, mas leniam também as agruras da alma. A partir do Século XX, à medida que a Medicina se foi firmando mais e mais como Ciência; os novos profissionais começaram a se aproximar das máquinas, dos acessórios de diagnóstico sofisticados, voltando-se mais para o tecnicismo e menos para a alma; mais para a superfície e menos para os recantos mais abissais da natureza humana.
O ouvinte , certamente, verá essa evolução como natural. O mundo mudou: a TV, o DVD, o Computador , a Internet , a Midia, imprimiram uma velocidade estonteante aos tempos modernos. Os contatos hoje se fazem muito mais virtualmente do que na esfera real. Já existe Cirurgia Robótica permitindo que um médico em Nova York opere um paciente em São Paulo, sem que nunca tenha visto seu cliente e sem que nunca tenha a impossibilidade de conhecê-lo um dia. Muitos sites já disponibilizam consultas virtuais, à distância. Já não existe espaço para o contato físico entre as pessoas, para o toque , o olhar, a escuta. O médico hoje formado, com certeza, não poderia ter permanecido o mesmo de anos passados. Hoje ele é tem uma formação muito mais técnica e muito menos humanística e as vocações são criadas através de um dos deuses da modernidade : o Mercado. Temos profissionais da mais alta qualificação , nas mais variadas sub-especialidades, capazes de tratar com esmero e maestria: dedos, fígados, olhos, cérebros; mas muitas vezes impossibilitados totalmente de cuidar de pessoas na sua holística vivência, na sua divina complexidade. A convivência entre os próprios colegas, também, sofreu uma grande deterioração, simplesmente porque não há mais colegas nos tempos atuais, existem concorrentes da mesma fatia de mercado. Tenebrosos tempos modernos!
Esta reflexão, amigos, talvez um pouco crua para um dia de sábado, brota em meio à tristeza que tomou conta da nossa cidade no dia de ontem. Partiu na inevitável viagem, um dos últimos luminares da fase áurea da Medicina caririense dos últimos 60 anos: Dr. Eldon Gutemberg Cariri. Querido de todos, recepcionou milhares de cratenses na chegada a este mundo de lágrimas, com um carinho e lhaneza quase que beneditinos. Pasmem vocês ! Ele sabia ouvir as pessoas! Não era um parteiro , mas um simples acólito da natureza. Acompanhava as gestantes por horas a fio, sem qualquer interferência no processo natural do parto: nem fórceps, nem medicamentos para apressar o processo e nem pensar em cesáreas desnecessárias! Longe dele a correria desenfreada dos dias de hoje, a velocidade estonteante das criaturas em busca de que? Para onde? Dr. Eldon, como um condor, não precisava de esforços desnecessários : sabia plainar, conhecia as correntes favoráveis de vento e flutuou vida afora, com a leveza de um bailarino. Discreto, sem arroubos, sem arrufos, exerceu seu sacerdócio por tanto tempo, antenado com os precipícios tenebrosos do espírito humano. Poliglota, leitor voraz, pianista, percebia claramente que a formação humanística é tão importante para o médico quanto o conhecimento técnico. Ontem, o condor pousou com a mesma leveza com que tinha empreendido o vôo por mais de oitenta anos.
Dr. Eldon parece deixar ensinamentos profundos às novas gerações. A paciência é capaz de mover montanhas. A Técnica isolada, apenas fabrica ótimos mecânicos para consertar relógios, rádios, computadores: não tem instrumentos suficientes de curar pessoas. E mais : a Ética precisa sobrepor todo conhecimento e toda a Ciência. Sem Ética não existe nada além da barbárie. O bailado suave do Dr. Eldon vai fazer falta num mundo cada vez mais propenso às lutas marciais do que ao Ballet.

J. Flávio Vieira

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