sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Néctar

Dormir a tarde toda
acordar com sabor
de antibiótico (líquido
e pastoso) na garganta
não resta outra coisa
senão lavar o rosto,
escovar os dentes
e fazer um baseado
de flores.

Dou um pulinho (saltitante
e peralta) até a varanda
e escolho criteriosamente
três pétalas: uma de lírio,
outra de crisântemo
e a última de rosa
(vermelha) .

Esmago (esmagar é errado)
afago-lhes a alma com a tampa
de bronze da minha caneta
e piso (pisar é desumano)
apalpo-lhes o espírito
com o cabo de marfim
do meu canivete.

Pronto,
feito meu elixir.

Desço (levitando)
até o porão mágico
e abro o velho baú
da minha vozinha.

Sei que lá tem
aquele tipo de papel
de carta apaixonada
nunca enviada
ao primeiro amor
(só serve dessa) .

É um papel
diáfana textura
uma hóstia imaculada
uma folha seca
que nunca o vento leva.

Encontrada a preciosidade,
lanço-a contra a réstia de luz
(trespassada pela telha de vidro)
à espera da bênção final.

Ao desmanchar-se
em gotas de orvalho

refaço a candura da folha
lendo em voz alta
as linhas e os espasmos
do que fora escrito
com tanto sonho
e paixão.

Enfim, agacho-me:

delicado, ponho
a folha (um fio
de brandura)
sobre o couro
do velho baú
e estico (esticar
é profano)
massageio-lhe
o coração.

Meus olhos brilham
enquanto meus olhos brilham
lembro-me de amar sempre

o cãozinho que morrera
a orquídea que não vingara
os versinhos rasgados
sob uma noite de fúria
e tolice.

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