quinta-feira, 3 de março de 2011

Mundos virtuais


A freira dominicana Maria Jesús Galán foi afastada , recentemente, de sua ordem religiosa, após 35 anos de reclusão. A religiosa é espanhola e carrega nos lábios um sorriso solto de quem anda de bem com a vida. A expulsão , em si, não seria notícia, não fosse pela causa que levou de volta a irmã Maria a este mundo ríspido e cruel. Galán é uma usuária assídua da internet, usa o computador para ler, ouvir músicas e fazer amigos. Sua página no Facebook arrolava quase seiscentos seguidores. A ordem dominicana possivelmente interpretou isto como uma perigosa quebra de reclusão, a freirinha estava periodicamente fugindo para o cyberspace.
Claro que os dominicanos têm lá suas regras, próprias do fechado clube que criaram e , como tal, têm o sagrado direito de escolher quem pode ou não freqüentar as suas hostes. A atitude, no entanto, me traz um mote para refletir sobre a terrível dificuldade que têm as religiões de acompanhar o dinamismo inexorável do tempo e da vida. Os templos todos terminam por ter um cheiro mal disfarçado de fuligem, de mofo, de teia de aranha.
As grandes religiões alicerçam-se em livros sagrados que foram escritos pretensamente sob inspiração divina há muitos séculos atrás: O Talmud, o Alcorão, a Bíblia, o Tipitaka, o Rig Veda, o Zend Avesta . Respeitemos todos os religiosos e acatemos a sacralidade destes livros. Mesmo assim, vem uma grande pergunta: mesmo sagrados e inspirados, quem os interpreta , quem os traduz, quem os ensina ? Ora, várias gerações de sacerdotes,místicos, beatos todos eles humanos, falíveis, eivados de paixões e defeitos. Mesmo assim, se outorgam poderes especiais e se apresentam como representantes legais do Homem, sem apresentarem, nunca, uma procuração assinada pelo Ser Supremo. Pois são justamente esses inúmeros sacerdotes falíveis que interpretam os desejos mais insondáveis de Deus. Montados neste poder supremo: criam regras, cospem sentenças, ditam códigos de ética, loteiam os céus e cobram pedágio, a todo momento ,neste caminho que pretensamente levará ao Shangri-lá da eternidade. A interpretação apaixonada e tantas vezes tendenciosa dos livros sagrados levou a tragédias históricas inimagináveis: a Inquisição, as Cruzadas, as Guerras “Santas”, as Jihads, os “Homens Bomba”, o genocídio indígena no Novo Mundo. Seria possível sair de um Ser Onisciente regras absurdas como : a proibição de transfusão de sangue; das crianças brincarem em parque de diversão; do uso da camisinha na prevenção da AIDS; a demonização do sexo e do prazer; o preconceito terrível com a diversidade sexual; o apedrejamento público de mulheres em caso de adultério ?
Além de tudo, esses livros escritos, alguns há milhares de anos, teriam condição de contemplar o mundo atual, com sua vertiginosa evolução ? Barriga de aluguel, Clonagem, Células Tronco,Fertilização in vitro, Internet, Globalização ? Claro parece que todos esses livros necessitariam de um upgrade providenciado pelo próprio Autor e não por seus pretensos procuradores.
A expulsão da madre Maria Galán é um nítido sinal de como as religiões estão presas ao passado . Emboloradas, não conseguem interpretar os novos tempos e suas complexidades. Fecham-se em guetos e vomitam ordens e leis ultrapassadas. Em tempos de cirurgia robótica ainda teimam em curar as chagas do corpo e do espírito com cataplasmas e sanguessugas. Madre Galán há de facilmente perceber que o mundo real é esse que ela vê agora fora dos muros do claustro, lá dentro o que existe é um universo virtual, fictício igualzinho ao que ela navegava quando acessava as páginas do Facebook.


J. Flávio Vieira

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