sexta-feira, 6 de maio de 2011

Teologia do espetáculo (transcrição)

Ao beatificar João Paulo II em tempo recorde, o sucessor Ratzinger apela ao show e à nostalgia para tentar frear a decadência e o esvaziamento da Igreja.
Foi “política” a decisão de não esperar os habituais cinco anos para iniciar o processo, apoiar-se num “milagre” arrancado a fórceps e ignorar as “objeções”, em especial as fundadas nas obscuras manobras financeiras do Vaticano em sua gestão e a negativa do papa polonês a investigar e punir padres e bispos pedófilos. Principalmente o corrupto padre mexicano Marcial Maciel, líder da Legião de Cristo, que abusou de menores (inclusive dois de seus próprios filhos ilegítimos), mas manteve a boa vontade da Igreja arrecadando rios de dinheiro de milionários mexicanos, boa parte dos quais fluiu para os bolsos da Cúria Romana. O papa polonês protegeu-o até o fim e o próprio Ratzinger teve de esperar subir ao trono papal para discipliná-lo.
Trata-se de santificar não a duvidosa virtude de Karol Wojtyla, mas a virada conservadora que promoveu. João XXIII e Paulo VI haviam conduzido a Igreja à modernização e reaproximação com a sociedade laica e com outras igrejas e religiões, processo subitamente freado após a morte nunca devidamente esclarecida do efêmero João Paulo I e a eleição do polonês identificado com a luta contra o comunismo. FORAM CONGELADOS OS DEBATES SOBRE CONTRACEPÇÃO E O PAPEL DA MULHER NA IGREJA. Quando o cardeal de Sevilha, José María Bueno, reuniu-se com ele e insistiu em que sua consciência lhe impunha insistir na questão do celibato e da escassez de sacerdotes, Wojtyla foi brutal: “E minha consciência de papa me impõe expulsar sua eminência de meu escritório”.
Fora dos corredores estagnados do Vaticano, porém, os ventos continuaram a soprar. Abriu-se ainda mais o abismo entre uma Igreja cada vez mais conservadora e exigente e a sociedade civil dos países católicos, cada vez mais laica e menos interessada nas opiniões do papa sobre moral e pecado.
O Vaticano é hostil aos exorcismos das igrejas carismáticas populares, mas sente a mesma necessidade de “espetacularização”. A apressada multiplicação de beatificações e canonizações tenta suprir o déficit de interesse, distribuindo santos a comunidades e grupos de interesse que não os tinham. Paulo VI fez 11 canonizações em 15 anos; João Paulo II estabeleceu um recorde histórico com 113 em 25 anos, inclusive o controvertido fundador da Opus Dei e a canonização coletiva de 25 fanáticos cristeros que lutaram contra o governo laico do México nos anos 1920 e 1930. Bento XVI fez nada menos de 34 nos primeiros seis anos.
Não são tempos fáceis para a Igreja Católica. Foi deixada por 50 mil alemães e 53 mil austríacos em 2009 e por 180 mil alemães e 87 mil austríacos no ano seguinte. Não se trata do abandono tácito de quem simplesmente deixa de comparecer às missas, mas de pedido formal de baixa, enviado a autoridades civis de forma a encerrar o pagamento de contribuições à Igreja (1,1% da renda, até o limite de 200 euros anuais) e pesa de fato nos bolsos das paróquias e dioceses. Desde 1990, 1,78 milhão de alemães formalizaram sua apostasia, mas o salto recente nos números está relacionado aos escândalos de pedofilia: é nas dioceses mais afetadas que o êxodo é maior. Na Bélgica, foram 66 casos em 2008, 380 em 2009 e 1,7 mil em 2010. Mesmo na arquicatólica Polônia, a frequência à Igreja caiu de 60% nos últimos dias do regime comunista para 45% nos dias de hoje. Na Inglaterra e em Gales, 61% dizem que têm uma religião, mas apenas 29% se dizem religiosos. Só 48% dos 53,5% que se dizem cristãos (ou seja, 25,7% dos ingleses) acreditam que Jesus foi de fato o filho de Deus e ressuscitou dos mortos.
A aposta do Vaticano de Joseph Ratzinger parece ser em uma Igreja capaz de manter “influência política” (e arrecadar recursos financeiros) por meio de um rebanho pequeno, mas monolítico e militante.
Assim, a Igreja se recolhe e a instituição que moldou a civilização ocidental pouco a pouco se transforma em uma entre muitas seitas reacionárias e intolerantes.

Fonte: Carta Capital

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