Por gentileza da Socorro Moreira, recebi de presente em Paracuru o livro “O Mistério das Treze Portas no Castelo Encantado da Ponte Fantástica”, do José Flávio e ilustrações de Reginaldo Farias. Foi uma das minhas leituras dadivosas dos meus dias naquela cidade, como já comentei no Cariricaturas a outra foi o livro do Armando Rafael “Os Dois Leandros”. Aliás, faço saber que recebi o exemplar que seria do Edmar e ele recebeu o autografado para mim, mas o produto não está fora de lugar.
Mas quando falo em leitura digo menos do que o produto que me foi presenteado: na verdade é um produto multimídia. Música, poesia, narrativa e imagens. Portanto mais do que José Flávio é um projeto coletivo, além do Reginaldo Farias tem Amélia Coelho, Lifanco, João Nicodemos, Abidoral Jamacaru, Ulisses Germano, Zé Nilton Figueiredo, Luiz Carlos Salatiel além de um pessoal que produziu o CD entre direção, arranjos, instrumentos, vozes e produção do CD.
Este pessoal todo se expressa nos blogs da região do cariri e tem uma vida na atividade cultural além fronteiras muito intensa. O produto final demonstra o quanto a arte é realizada com baixos custos no país e tenho quase certeza que a manutenção dele numa dinâmica que contemple o seu público infantil preferencial ainda é um dos elos presos da nossa divulgação cultural.
Se as secretarias de educação da região estiverem preparando professores para dinâmicas de aprendizado com os alunos tendo este produto como base eu ficarei tomado de surpresa e muito satisfeito pela boa notícia. Normalmente o produto cultural, mesmo que de excelência como este, pára entre nós numa esteira sem energia para espalhá-lo no meio do público beneficiado por ele.
Mas estou fugindo muito da leitura. Volto a ela. E o que leio e ouço? A proposta de uma geração de artistas e intelectuais do cariri em expor os valores encantados de uma forte cultura acontecida ai neste umbigo do nordeste como bem lembrou Padre Gomes. Como é de se esperar uma geração soterrada por enorme volume de produtos externos, promovendo modificações na geografia política da região, só poderia enfrentar dificuldades excedentes para suas forças locais.
O Salatiel, o Marcondes Leonel, o Carlos Rafael, o Zé Flávio, Lupeu, Zé Nilton, o Abidoral, Pachelly entre tantos e tantas, tinham preso na garganta o que o primeiro traduziu tão bem, apesar das dificuldades inerentes no rádio e no blog Cariri Encantado. A geração deles sabe que sobre a volúpia transformadora da região, a cada dez anos muitas coisas começam e tantas outras desaparecem, existe um magma ainda morno de uma “realidade mágica” que torna a cultura em algo inato.
O inato se faz por duas coisas essenciais: a ancestralidade e a universalidade. Não existe universalidade sem que uma ancestralidade crie a sabedoria para firmar o corpo universal. A universalidade, até por paradigma de um universo de espaço-tempo, é o momento do movimento de expansão com a poeira cósmica do passado. É isso que as treze portas escondem nestas ruas coalhadas de universitários, de consumistas de shopping, das vantagens econômicas que apagam coisas belas, como, por exemplo, o ser humano.
A narrativa das Treze Portas é uma mistura da historicidade do cariri desde o princípio do século XIX e trás inúmeras referências às lutas do passado. Fala de povos, de lendas, de visões de mundo onde a engrenagem roda muito além dos tempos modernos e o desespero de Chaplin apertando parafusos. Por isso esta geração que se junta neste produto, tem um ponto de mirada à leste com os tempos da narrativa oral e oeste com as próprias histórias que viveram desde a infância.
Zé Flávio neste projeto faz uma das coisas que mais gosta de fazer, contrariando seu metódico processo intelectual. Abandona os alfarrábios como gostava de falar o Professor Alderico Damasceno (o livro capa de couro) e passeia na sua memória afetiva. Como o conheço peguei várias: a ponte quebrada do Rio Batateira, algumas cenas de paisagem e até Paracuru que me mobilizou, mas não ficou bem revelado como ele chegou ao Lagarto do Mar (ou sei e ainda não percebi?).
Como as histórias da tradição oral, com reis, princesas, monstros e lutas míticas, as treze portas vão atravessadas por danças populares como o boi e o reisado. Nisso este produto multimídia vai fundo num modo de narrar e num universo narrativo com sua composição ancestral. Quando o leitor chegar ao ponto de término da história de Trancoso ao luar, eles dão a guinada em direção aos trezes elementos culturais que unificariam o “cariri encantado” ou a este desencantado.
Estou falando das treze portas: o sabor e o cheiro da terra; o Rei da Serra, Capela e a coragem de defender os oprimidos, Vicente Finim e as noites de luar, Maria Caboré a milagreira, o poder político com a mudança de lado no rio, Noventa e os segredos dos moinhos que movimentam as coisas, Zé Bedeu e os cuidados dos espaços públicos; Padre Verdeixa e o humor; Zé de Matos o poeta da crítica aos costumes; o Beato Zé Lourenço o organizador social/espiritual; Seu Jéfferson e o Pai-da-Mata na ecologia.
Enfim, para o encanto da vida tendo como centro o ser humano universal (portanto ancestral) são necessários, em face das treze portas: os sentidos, a coragem de agir, ultrapassar os limites das agruras, mudar o objeto da política, compreender o mundo, cuidar da ambiência coletiva, brincar com as normas, criticar a rigidez, organizar as pessoas e defender a vida no planeta.
Ao final numa apoteose nasce o filho gestado a longo tempo no útero da Catirina e este filho é você no espelho que acompanha o livro. O Cariri pode nem perceber as portas, mas é certo que este pessoal já demonstrou que elas existem.
Observação: acabei de entrar no site para postar este texto e vi que o livro será lançado no dia da criança. Foi coincidência, enquanto escrevia, desconhecia o lançamento.
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