terça-feira, 4 de outubro de 2011
Minha avó Lídia - Emerson Monteiro
Ouvia Mulheres de Atenas, na voz de Chico Buarque, quando retornou às minhas lembranças a forte presença da mãe de meu pai, Lídia Augusto Leite, neta de Fideralina Augusto, de quem coube herdar a casa grande do Tatu, onde esta vivera, sítio em que nasci e fiquei até os quatro anos.
Para seguir o meu avô havia de ser realista das chagas do sertão áspero. Resignada, de gestos austeros e sempre silenciosos, mantinha a existência dos movimentos que representavam o cotidiano das almas penadas que tangiam o troar de moedas e o trancilim dos animais no carreto da cana, dos pastos para o gado, correria das ovelhas e o ritual da igrejinha lá no alto, próxima da casa dos meus pais, no outro lado da enorme bagaceira do engenho. Quase surda, falava mais aos gritos. E nós, os netos, lhe respondíamos: - Vó, quem é mouca é a senhora. Não precisa falar assim dessa altura.
Mulher de fibra, estruturava o sistema desse mundo ensolarado. Mãe doze vezes, apenas nove dos filhos permaneceriam vivos. Feições de sertaneja puxadas a índio bravio, seus olhos não olhavam, fuzilavam os personagens em volta, acesos no fogaréu da faina humana que enfeixavam a cena.
Recordo a simpatia com que tangia a intimidade da família, de riso raro a quebrar um pouco o peso da autoridade do meu avô, seu primo, também neto de Fideralina. A varanda era palco de tudo, vindas e idas de tantas ocasiões, e porto seguro das atividades rurais.
Quando precisou limpar a capela, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, recebeu da filhas, que moravam no Rio de Janeiro, caixas e mais caixas de prendas leiloadas em quermesse no terreiro da casa, com a presença de visitantes dos sítios próximos e de Lavras, a uma légua no lombo das montarias.
Firme nos propósitos, sofreria resignada a saudade dos filhos. Meu pai saiu bem depois, vindo morar em Crato. Eles permaneceriam ainda um pouco no lugar. Adiante lhe seguiriam. Seriam nossos vizinhos de quase duas décadas. Novamente os frequentei como assíduo participante de suas vidas.
Sentava junto deles para testemunhar o fluir solene do tempo naquelas silhuetas marcadas de cicatrizes reunidas ao sabor da cumplicidade. Nisso, ouvia as histórias do meu avô, enquanto ela outra vez regia a orquestra da casa, solícita, perene, corajosa.
Após cumprir os afazeres, parava na porta da rua a observar raras pessoas nas calçadas; os automóveis só de longe começavam a dominar a paisagem urbana. Antes dela, meu avô seguiria na última viagem. Ficara ali ausente e metódica. Durante longos e aflitos 33 dias, permaneceu em coma, protelando o derradeiro chamado qual quem gostaria de continuar a temporada que passou junto de nós.
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