Primeiro ano da Residência Médica. Recém saídos do Internato, os médicos carregavam consigo toda a ansiedade e insegurança do início da profissão, mas , por outro lado, a certeza de que era possível dar um cangapé na falida estrutura da Medicina brasileira e construir um mundo melhor que o proporcionado pela geração anterior. Sem utopia, não se vive! Hospital Público de referência, na capital, sobrevivia em meio aos inúmeros contrastes. De um lado, um Corpo Clínico da mais refinada qualificação, do outro as deformidades típicas dos países de terceiro mundo : a falta quase contínua dos mais elementares insumos. Os residentes, uns 30, com aquele ofuscante brilho nos olhos de início de carreira, se subdividiam nas inúmeras especialidades: Clínica Médica, Cirurgia, Ortopedia e Oftalmologia. Os homens, naquele ano, eram feios de fazer dó : pareciam uns papangus. As mulheres, mais jeitosas, com exceção de uma ou outra mais fraquinha de feição, como comentavam os meninos. Havia, no entanto, uma Residente da Oftalmo que era lindíssima: uns dois metros, olhos azuis, curvas que lembravam a estrada de Petrópolis. Os residentes a comparavam ao Krakatoa : alta, linda, em plena erupção, mas perfeitamente inacessível à maioria dos mortais. Nada mais congruente que um colírio daquele naipe escolhesse a área de oftalmologia, pensava a tropa !
Com o desenrolar dos dias, os meninos se foram apaixonando alternada e seguidamente por Ludmilla – assim se chamava e o nome sensual já lhe fora colocado quase como uma premonição. Aceravam, faziam o cerca-lourenço, soltavam a lábia que não era suficiente para derrubar um Airbus daquela envergadura e , depois, diante na negativa, caiam num estado de desolação de fazer pena. Aos poucos, os rapazes desconfiaram que Ludmilla se fazia de gostosa e difícil por uma causa muito pragmática. Devia ser muito interesseira, conhecia perfeitamente o farto e rico material que possuía e não pretendia queimar as fichas com qualquer pé rapado. O grande problema ali é que a Residência parecia laje de rio : era uma liseira generalizada! Os carros da galera eram geralmente populares e com largos anos de estrada, muitos já nem pagavam IPVA.
Pois bem, um belo dia, Ludmilla comentou, em tom de deboche, a Getúlio, um residente de cirurgia, que inclusive já tinha sido preterido por ela, que não lhe faltava mais nada. Pois , no último fim de semana, o Crizélido, o mais feioso da turma, residente da Ortopedia, depois de umas cervejinhas, não lhe dera uma cantada? Era só o que me faltava! Um chaverinho daqueles ! Feio que só briga de foice no escuro ! O Getúlio se indignou junto com ela ( meio por ciúme, meio prá encompridar conversa) e pinicou o oratório do colega:
--- Mas menino, num falta mais nada mesmo! Um sapo às avessas daqueles ! Ludmilla, e o pior : eu conheço aquilo desde menino! Ele nasceu lá no Mato Grosso, em Dourados, na minha cidade. O pai é podre de rico, tem fazenda prá tudo quanto é canto. Ele mesmo tem uma BMW lá! Mas aqui o sovina passa por pobrezinho, por miserável. Tem um Gol velho caindo aos pedaços, divide tudo quanto é conta com a gente. Diz que é para não dar na vista, pois tem medo de ser seqüestrado, o salafrário !
Ninguém compreendeu bem o desenrolar dos fatos. Após a descasca de Getúlio, estranhamente, já no outro final de semana, Crizélido e Ludmilla estavam aos beijos e abraços. O namoro pegou fogo e já no final do primeiro ano da Residência, ela apareceu grávida: parece que esqueceu de tomar os comprimidos. Casaram logo depois. Terminaram e voltaram para Dourados onde um Hospital montado pelo pai de Crizélido já os aguardava. Vivem felicíssimos: é “mor” prá cá, “mor” prá lá !
Mais uma vez parece ter se confirmado a máxima rodrigueana: Dinheiro compra tudo, até Amor Verdadeiro ! Quanto a Getúlio, além da Cirurgia, ganhou uma nova profissão: o de Conselheiro às Avessas ! Dizem que foi ele quem deu cordas para Kadaffi não abdicar e, a pedido de Lula, foi ele quem convenceu o Zé Serra que era ele( bonito e simpático) o candidato ideal do PSDB a Presidência da República.
J. Flávio Vieira
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