Permitam-me começar esta cerimônia com um poema do “Four Quartets” de Thomas Stearnes Eliot . É que a literatura carrega consigo seus misteriosos ritos e se há muito de eucarístico na Poesia , os versos são uma Prece e nos conectam com o divino e o sagrado, fazendo pairar sobre todos nós os eflúvios das musas e deuses do Olimpo.
“Em meu Princípio está meu fim. Umas após outras
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar
Surgem um campo aberto, uma usina ou um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhas lenhas para novas chamas,
Velhas chamas em cinza convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas,
Terra agora feita carne, pedra, fezes,
Ossos de homens e bestas, trigais e folhas.
As casas vivem e morrem: há um tempo para construir
E um tempo para viver e conceber
E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças
E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre
E sacudir as tapeçarias em farrapo tecidas com a silente legenda”
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“Aqui ou ali, não interessa
Devemos estar imóveis e contudo mover-nos
Rumo a outra intensidade
A uma união mais ampla, uma comunhão mais profunda
Através da escura frieza e da vazia desolação,
O grito da vaga, o grito do vento, as águas infinitas
Da procelária e do delfim. Em meu fim está meu princípio"
E a poesia, amigos, parece louco dizê-lo , está no princípio de tudo neste universo. O Gênesis e o Apocalipse que mais são além de um orgasmo poético das superiores e insondáveis forças que com seus cadarços invisíveis movem a amplidão ? A flor fosforescente que, em botão, desabrocha no campo; a pétala que adiante cai e alimenta o solo; a semente que se abre e reinicia o ciclo; o pólen aspergido pelo vento que amplia o universo da fertilização; o corpo desfalecido que sucumbe – são todos capítulos de uma mesma história, ramalhetes de um mesmo bouquet.
Pareceria , então, perfeitamente plausível que aqui estivéssemos em comunhão , para uma celebração sagrada: o lançamento de um livro de poesias. No entanto, diante de um mundo tão pouco poético, tão tecnicista, tão pouco glamoroso, esta solenidade pode parecer totalmente obsoleta e grita-nos a pergunta inevitável : Prá que diabos serve Poesia no mundo de hoje ? Um mundo onde não mais se conversa: se tecla; não mais há encontros em praças, mas em chats; onde o olho-a-olho, o toque, o sorriso foram substituídos pelos e-mails. Um mundo líquido, tão bem caracterizado por Baumman , onde a fluidez estonteante leva de roldão não só as modas, os costumes, mas os sentimentos mais profundos que serviram um dia de amálgama contra a inevitabilidade da morte e o cupim inexorável do tempo. Numa sociedade tão pragmática como a que nos tornamos, onde tudo no planeta se tenta representar numa planilha do Excel; onde o Código de Barras foi se tornando mais importante que o Código de Ética; onde o grande dilema de Hamlet hoje se resume a “Ter ou não ter: eis a questão”... Prá que diabos serve a Poesia ? Se já não nos interessa o mistério das coisas porque tudo pode ser encontrado facilmente no Google; se escancaramos todas as barreiras da intimidade ; se amigo é definido como aquele que faz parte da mesma comunidade no Facebook; se a Ciência tudo pode e tudo permite; se só existe um Deus : O consumo e uma só Igreja verdadeira: o Shopping Center... Prá que diabos se lança um livro de poesias ?
Antecipei, amigos, estas questões porque percebo, claramente, que muitos dos que vieram já se viram diante de iguais inquirições e boa parte daqueles que convidados não compareceram, com certeza, assim o fizeram, acicatados por dúvidas semelhantes. A Poesia ? Tem alguma serventia ?
Pois bem, amigos, tentarei decifrar o enigma da Esfinge. A poesia não possui qualquer utilidade prática, como dizia Leminsky : é um objeto perfeitamente inutilitário. Com ela você não desconta cheque em Banco, não compra bolacha em supermercado, não cura tísica de menino catarrento. Mas a nossa Sociedade, amigos, só compra objetos perfeitamente úteis? Observem a casa de vocês num dia de mudança: quanto traste adquirido desnecessariamente ! O taco de beisebol trazido como lembrança de Miami; as roupas incontáveis que caíram de moda de repente; o sapateiro repleto de sapatos que fariam inveja a um imbuá... Hoje, amigos, mais que nunca, as coisas todas são perfeita e intencionalmente descartáveis , até nós! Mas não proponho que vocês comprem poemas por simples compulsão, que juntem os livros às outras tantas coisas imprestáveis da casa de vocês. Não !
Observem mais um pouco e percebam que na nossa casa existem objetos valiosíssimos, inegociáveis e que, por outro lado, não teriam qualquer valor de mercado. A foto da primeira namorada que entocamos no fundo da gaveta; o primeiro caderno de caligrafia ; a primeira boneca de porcelana; uma pedrinha que trouxemos da Chapada Diamantina num Réveillon inesquecível... ninguém daria um vintém por qualquer um desses itens e por outro lado muitos não os venderiam por qualquer dinheiro desse mundo. Eles têm um valor intrínseco que é impossível de mensurar. Não existem balanças aferidas para pesar o sonho e os mais estranhos objetos do nosso desejo. Há assim valores que sobrepassam as simples tabelas contábeis do Deve-Haver. E eu ousaria afirmar que – imunes aos bolores do tempo e à ferrugem das horas – esta é a única bagagem que nos será permitida conduzir na derradeira viagem quando o Princípio de tudo tocará a sua outra extremidade : o Fim.
A Poesia, amigos, faz parte dessa aresta imaterial da nossa existência. Sem ela é-nos impossível atingir a essência íntima das coisas. Ela possibilita enxergar além da fronteira do aparentemente real. Olhos embotados pela dura realidade cotidiana , uma normalidade perigosa nos solapará pouco a pouco a alma: a violência, a desigualdade, a injustiça, o preconceito, a fome irão se tornando para nós perfeitamente normais e imutáveis. A Poesia nos mostrará outros caminhos a trilhar, antepondo-nos um filtro diante das retinas poderemos perceber nuances até então inexploradas do universo à nossa volta. A percepção dessa dimensão multi-sensorial nos faz compreender o planeta além do nosso pomar e do nosso quintal. Seria impossível a um poeta acender o estopim do Enola Gay ou incendiar Roma, mesmo sob o pretexto de compor uma Sinfonia perfeita. É que Ética e Estética são o verso e o anverso de uma mesma moeda, amigos. Se alguém pretende ensinar Ética para as gerações futuras, conduza as crianças pelas veredas da Arte. Qualquer pessoa que consiga se emocionar diante do Não-Figurativismo de Iberê Camargo , tem no seu âmago uma profunda comunhão com os mistérios da Vida. E a Poesia , amigos, é o amálgama básico de qualquer forma de Arte, uma poderosa forma de alumbramento.
E aqui estamos nós, em meio a tantas digressões, para o lançamento do sétimo livro do nosso Wellington Alves: “Inventário de Poesias”. Mais conhecido por todos pelo afetuoso apelido de TON-TON. Ele, em verdade, seguindo o epíteto quase que premonitório, sempre executou a sinfonia da Vida em muitos tons : Médico psiquiatra, cidadão do mundo, alma de boêmio, militante político ,compulsivo tecedor de amizades; a poesia de Ton-Ton é uma extensão da sua vida. Apesar do que possa parecer o título desse livro, não se trata de um poeta burocrático, Ton-Ton deixa fluir dos seus versos, o encantamento de um vate maduro frente ao mundo com seus mistérios, suas complexidades e sua finitude. Sabiamente, o poeta faz o inventário, em vida, para muitos amigos e muitos leitores, da riqueza que foi auferindo durante a existência. Não de bens materiais perfeitamente expostos ao caruncho e às traças e que fazem a canibalesca festa dos inventários tradicionais, onde se partilham quinquilharias , se destroem laços familiares e se criam inimigos figadais. Ton-Ton deixa como herança sentimentos impalpáveis mas perceptíveis fragmentos de toda uma existência: seu amor incondicional por Fátima e pelos filhos, sua proximidade ao sagrado e sua aversão ao ritual, a estrada que se alonga às costas e parece se estreitar à frente.
Sintam-se assim, todos, seus herdeiros universais. A cada um de vocês caberá : uma nesga da lua de agosto, um crepúsculo na duna de Jeriquaquara, um sopro do orvalho da Chapada, um alvorecer no Vale do Loire. Este é o tempo de viver e conceber, da ampla comunhão com a vida, antes que o Tempo venha estilhaçar as trêmulas vidraças que separam o Príncipio do Fim.
P.S. - Apresentação do livro "Inventário de Poesias" de Wellington Alves, em 24/11/11 no SESC /Crato, com inesquecível Performance de Luiz Carlos Salatiel.
J. Flávio Vieira
Wellington Alves, "Inventários de poesias" estou gostando desde a apresentação das primeiras páginas, a leveza da naturalidade sincera de quem viveu bem, pena que não pude conhece-lo pessoalmente um autor encantador.
ResponderExcluirAbraço doutor.
Gabí
Lindo texto colocou em lista o que pensava casualmente, mas tento lembrar que o remédio que cura as vezes mata e o veneno em dose certa pode curar.