segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

"Idiotas da Objetividade" - José Nilton Mariao Saraiva

Competente, personalista, criativo, extremamente polêmico, “biriteiro” e fumante (de marca maior, tanto que vitimado pela tuberculose) e sem papas na língua (ou ao teclado da sua velha “Remington”), Nelson Rodrigues (natural de Pernambuco, mas desde a mais tenra idade radicado no Rio de Janeiro) foi um grande romancista, contista, cronista e dramaturgo (além de torcedor apaixonado pelo seu “Fluminense Futebol Clube”, tricolor das Laranjeiras).

No teatro, peças como “Vestido de noiva”, “Perdoa-me por me traíres”, “O beijo no asfalto”, “Bonitinha, mas ordinária” e “Toda nudez será castigada” (dentre outras) marcaram pela ousadia (para a época), daí ter sido alcunhado (de certa forma com propriedade), de “anjo pornográfico”.

Em termos de romances, contos e crônicas (também pra lá de avançadas) o repertório era versátil e amplo, valendo lembrar "Asfalto selvagem", "A vida como ela é...", "A dama do lotação" e "O óbvio ululante: primeiras confissões" e por ai vai (foram centenas e centenas).

Deixou também frases antológicas, que ainda hoje repercutem aqui e alhures, algumas pra lá de polêmicas e outras tantas pra lá de atuais (vide abaixo):

1) "O Brasil é muito impopular no Brasil." 2) “Todo ginecologista devia ser casto. O ginecologista devia andar com batina, sandálias e coroinha na cabeça. Como um São Francisco de Assis, com luva de borracha e um passarinho em cada ombro”. 3) "Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam." 4) "Toda unanimidade é burra." 5) "Só os profetas enxergam o óbvio." 6) "Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico." 7) "Até 1919, a mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera." 8) "A cama é um móvel metafísico." 9) "Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais." 10) "Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." 11) "Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia." 12) "Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola." 13) "Deus me livre de ser inteligente". 14) "Não há nada mais relapso do que a memória. Atrevo-me mesmo a dizer que a memória é uma vigarista, uma emérita falsificadora de fatos e de figuras." 15) "O 'homem de bem' é um cadáver mal informado. Não sabe que morreu." 16) "Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhoras que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém." 17) "Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de "ilustre", de "insigne", de "formidável", qualquer borra-botas. 18) “O boteco é ressoante como uma concha marinha; todas as vozes brasileiras passam por ele". 19) "Acho a velocidade um prazer de cretinos; ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca." 20) "Amar é ser fiel a quem nos trai" 21) "O brasileiro é um feriado." 22) "As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado". 23) "O homem começou a própria desumanização quando separou o sexo do amor." 24) “Deus está nas coincidências”. 25) “Invejo a burrice, porque é eterna”. 26) “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida; não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”. 27) “Não existe família sem adúltera”. 28) “Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe”. 29) “O amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira. É abjeto que um homem deseje a mãe de seus próprios filhos”. 30) “O brasileiro, quando não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte”. 31) “O pudor é a mais afrodisíaca das virtudes”. 32) “Qualquer indivíduo é mais importante do que a Via Láctea”. 33) “A platéia só é respeitosa quando não está a entender nada”. 34) “A liberdade é mais importante do que o pão”. 35) “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”. 36) “Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu”. 37) “A prostituta só enlouquece excepcionalmente. A mulher honesta, sim, é que, devorada pelos próprios escrúpulos, está sempre no limite, na implacável fronteira”. 38) “As grandes convivências estão a um milímetro do tédio”. 39) “O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência”. 40) “O sábado é uma ilusão”. 41) “Só o cinismo redime um casamento. É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de ouro”. 42) “Convém não facilitar com os bons, convém não provocar os puros. Há no ser humano, e ainda nos melhores, uma série de ferocidades adormecidas. O importante é não acordá-las”.

Uma das passagens que mais o marcaram, no entanto, foi quando resolveu deitar falação sobre os “idiotas da objetividade”. Na verdade, a transmutação, o processo de metamorfose ou gradual “americanização” da imprensa brasileira, que obrigava o jornalista a deixar de lado o floreio verbal, o detalhamento do fato, as minúcias da ocorrência e até o uso de um pouco de exagero, privando o leitor da expectativa sobre o desenlace da matéria; a partir de então, o objetivo era entregar-lhe um texto já mastigado, enxuto, insosso, sem nenhuma emoção ou capaz de provocar-lhe qualquer comoção. Para Nelson, os profissionais que se prestavam a essa nova realidade não eram jornalistas na essência, mas, sim, meros “idiotas da objetividade” (porquanto apenas transcreviam e assinavam os textos recebidos das agências de notícias).
A reflexão tem muito a ver como determinadas figuras jurássicas, que não tiveram o cuidado de se reciclar (e que pululam aqui e acolá), adeptas da tese estapafúrdia de que, por não viverem num determinado ambiente ou cidade, as pessoas estariam incapacitadas ou inabilitadas para opinar ou redigir sobre o que lá acontece, porquanto teoricamente desinformadas ou desprovidas daquela massa cinzenta que os faz pensar, agir, ter opinião própria a respeito das coisas e do mundo e sobre tal manifestar-se (a Internet, o telefone, o jornal, os correios e a comunicação familiar nada valeriam, mas, tão somente, a presença, a “matéria bruta” in loco, preferencialmente ao vivo e a cores.

E aí, será que Nelson Rodrigues os rotularia de “idiotas da objetividade” ???

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