quinta-feira, 17 de maio de 2012

Os Sinos


A morte de cada homem diminui-me,
porque sou parte da humanidade. Portanto,
 nunca procure saber por quem os sinos dobram;
eles dobram por ti.
John Donne

                                               Recentemente vários colegas se juntaram ,atônitos e desconsertados, no velório de um amigo,  contemporâneo dos doces enlevos da adolescência. A morte traz consigo aquela mescla dúbia de sentimentos: estupor, curiosidade, pesar, angústia, dúvida. A inevitabilidade da chegada da sombria Dama da Noite nos impele diretamente à perspectiva futura do nosso próprio fim. Como pôde acontecer tão prematuramente ? Por que  levar uma pessoa tão cheia de vida? Por que é tão árduo construir e tão simples para demolir? Que mistério nos aguarda do outro lado do umbral ?  Até os mais crentes e religiosos, no fundo do coração, carregam consigo, um ponto de interrogação em feitio de cruz. Mesmo os que têm a plena certeza da transcendência , ante o mistério insondável batendo à porta, sempre se deixam invadir pelo biológico instinto de preservação. Um dos colegas do banco de escola lembrava como percebia o ciclo da vida. Começamos indo ao velório dos avós , depois , sem que percebamos, passamos a acompanhar o esquife dos nossos pais e depois , finalmente, o funeral dos próprios companheiros. Nesta última fase, queiramos ou não, perfilamo-nos todos na linha de tiro, sem nenhum escudo adiante, aguardando apenas o disparo e a pontaria ruim ou mais afiada  da velha da foiçona. Todos portando imensos rabos de palha, como não se agoniar vendo o incêndio enorme varrendo a coivara vizinha ?
                                   O desaparecimento do amigo nos joga na cara verdades que teimamos em não enfrentar. A vida é curta demais para a imensidão do sonho que carregamos. Despendemos ainda o tempo mínimo e precioso com iniqüidades, com coisas pequenas, com trabalho excessivo, com encucamentos desnecessários, tentando resolver problemas insolúveis ou auto-solucionáveis. Vamos pondo nas costas uma imensa carga de ódio, remorso, arrependimentos, ambições, aspirações inalcançáveis e inúteis e a travessia ,que por natureza já é breve,   assim vai se tornando ainda dolorosa e insuportável.  Quando o castelo de areia vizinho ao nosso é engolido pela preamar,  despertamos para a devastação próxima e inevitável do nosso forte, ainda em mero projeto, e já pronto a ser lambido pelas águas. No fundo, não é a morte que tememos, mas o simples arremedo de vida que conseguimos moldar com as poucas horas que nos foram disponibilizadas.
                                   Os crentes me asseguram que no final dos dias todos nos reuniremos novamente. Os espíritas me tranqüilizam dizendo que  teremos outras oportunidades em outras vidas que virão adiante. Muitos me oferecem terrenos no céu e me oferecem ainda um número incontável de virgens a escolher – se for chamado apenas velhinho como pretendo, ainda terei disposição para o desfrute ? Outros me ameaçam com  o a fúria de um deus irascível e o terrível clima do inferno, se eu tentar fazer minha travessia terrestre mais prazerosa.
                                   Já tenho preocupações demais para este mundo. Se do outro lado da porta , existir um outro, surpreso,  tentarei fazer o melhor possível por lá, exatamente como tentei proceder por  aqui. Por enquanto vou cuidando da carne, quando for só osso tentarei arrumar a ossada  como melhor me convier. Cantar e dançar na praça antes que os sinos dobrem. E mais tenho que fazê-lo, agora, com responsabilidade dobrada,  por mim e por aqueles que foram ficando no caminho, como se suas vidas continuassem na minha  e se elas já foram curtas pela própria natureza, não têm necessidade nenhuma  de serem pequenas. 

J. Flávio Vieira

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