quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Gambiarra


Eliseu  montara uma pequena bodega em Matozinho. Estabelecimentozinho de periferia, com duas portas que davam para rua e  eram fechadas com uma centena de cadeados, toda noite, por um comerciante temeroso de um rapa dos malacas cada dia mais frequentes e ousados naquelas brenhas. Com o passar dos anos e o crescimento da Vila, a bodega tornou-se cada vez mais central e nosso empreendedor  resolveu ampliá-la, comprando uma casa vizinha e estendendo um puxado lateral. Após a reforma de pobre, que durou uns três anos, Eliseu  resolveu , impavidamente, colocar um nome mais apropriado e menos brega. Convocou, então, “Pedro Brocha”, o mais importante puxador de letras da Vila. Uns dois dias depois, avistavam-se,  de longe,  as letras garrafais abertas por Pedro, no frontispício da antiga Bodega :  “Mercadim  Temo-Meno” e logo embaixo o slogan : “Se tá liso , fale com Eliseu “.
                                   Nosso comerciante compreendia, perfeitamente, os meandros dos pequenos negócios de interior. Precisava vender fiado, pois a clientela vive eternamente na dependura, esperando o salário futuro,  o Bolsa Família ou o décimo terceiro. Para tanto risco, fazia-se necessário vender com uma grande margem de lucro para cobrir os inevitáveis prejuízos dos velhacos que estavam , sempre, não na camada mais pobre da população, mas entre os mais remediados. Por outro lado, fazia-se mister fracionar as vendas a granel, ampliando as possibilidades de compra de todos : uma colher de manteiga, uma xícara de açúcar, dois dedos de óleo comestível, três gomes de tangerina, uma  talagada de café e por aí se estendiam as variadas unidades de  compra.  Houve casos de Eliseu vender a clara de  ovo para um freguês e a gema a outro.
                                   Com os ajustes necessários às peculiaridades de Matozinho, o negócio prosperou. Eliseu comprou alguns imóveis na nova periferia da cidade e até um sitiozinho próximo ao Açude do Sabugo, onde cultivava algumas fruteiras, quando conseguia se desvencilhar do Mercadinho que não lhe dava trégua , nem nos fins de semana ,nem nos feriados. Mesmo contanto com a ajuda de D. Eudóxia, a esposa, que se dividia entre os trabalhos domésticos e os empreendimentos comerciais do marido.
                                   O casamento, de mais de trinta anos, já era uma instituição mais burocrática que afetiva. O casal aprendera a se gostar, mas já não os unia aquele fulgor juvenil que incendiava as fronhas dos travesseiros e sapecava as beiradas das cuecas e calcinhas. Talvez, por isso mesmo, Eliseu ante uma Eudóxia de fogo arrefecido pela ducha da menopausa, tenha arranjado uma gambiarra,  se enrabichado de uma moreninha fogosa de uns vinte e poucos anos. Chamava-se Zuleika, para os íntimos, como Eliseu, atendia por Zuzu. Pernas parecendo troncos de aroeira, peitos duros, pontudos , ameaçadoramente, em riste,  e uma bunda enorme, de almofada; era impossível não se endoidar os cabeções  diante daquela Deusa Afro.
                                    Eliseu cedeu uma das casas para ela, fazendo um contrato fictício para não despertar a desconfiança da esposa e, à noite, passou seguidamente a sair e chegar tarde, sob o pretexto de que precisava cuidar do sítio. Como sói acontecer nesses casos, a repetição sub-reptícia dos meus hábitos termina por denunciar o crime. Cidadezinha pequena : povo de língua grande! Não tardou chegar aos ouvidos de Eudóxia a história da teúda e manteúda do marido. As portas do inferno, então, se abriram para Eliseu. A mulher, como um cão farejador, não dava trégua. Aos poucos, foi cercando o Lourenço e com ajuda de inúmeras amigas, montou um extenso dossiê sobre o caso e, montada neste calhamaço, dia após dia, numa tortura chinesa, infernizava a vida já tão atribulada do bodegueiro. Eliseu negava , negava, mesmo diante das inúmeras evidências. Inexistiam, no entanto, provas materiais e, de posse desta jurisprudência, ele mantinha uma cara de injustiçado, de perseguido, de torturado pelas idéias persecutórias da patroa. Esta era a única defesa que lhe restava. Começou a ter cuidados extras e os encontros com Zuzu, não mais se faziam na casa dela ( por medo de flagra) , mas no sítio, no mato, em propriedades afastadas de alguns amigos e numa outra residência que terminou adquirindo, às escondidas, no caminho de Bertioga e que usava, periodicamente, como um ninho de amor.
                                   Semana passada, no entanto, a porca torceu o rabo. Eudóxia permanecia no Mercadinho durante todo o dia, só saía na hora do almoço, entre às 11 e 13 horas. Ciente deste hábito da esposa, Zuzu tinha sido orientada  a , mensalmente, ir justamente neste horário pegar a feira dela.  Alguém deve ter soprado no ouvido de Eudóxia, o certo é que, no último sábado, no horário previsto, Zuzu estava com o carrinho cheio, no caixa de Eliseu, trocando os últimos combinemos para as noites seguintes, quando, de repente, a esposa entrou feito bala,  Mercantil adentro. Fitou o casal, furiosa e, mãos na cintura, em feitio de açucareiro,  aguardou o desfecho. Ia ser de graça? Estava, então, constatada, definitivamente, a tramóia! Certamente ela não tinha dinheiro pra pagar a feira, né? – pensou Eudóxia com suas metralhadoras engatilhadas!
                        Eliseu, no entanto, permaneceu tranqüilo, como se nada tivesse acontecido e Zuzu ainda pediu licença , perguntando se era possível ainda acrescentar mais uma lata de Leite Ninho. Claro que sim, minha senhora! -- retrucou o comerciante. Quando a mocinha retornou, ainda sob  as baterias carregadas de Eudóxia que a fuzilava, olhando de cima abaixo, como se perguntasse( com a pior certeza desse mundo) : “o que é que ela tem que eu não tenho?” , um Eliseu calmo e tranquilo, dirigiu-se ao Caixa, tirou de lá  setenta reais, estirou as notas despretensiosamente para a deusa de ébano e agradeceu:
                        ---- Tá aqui seu troco, D. Zuleika!Recomendações ao seu esposo !  Obrigado pela freguesia e volte sempre, viu? 

J. Flávio Vieira

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