Lembrar. Em silêncio acompanhar a trajetória no tempo e no
espaço do antes, durante e depois. O silêncio explica melhor o húmus da terra
quando falamos de pessoas muito ligadas a nossa existência. Expressar algo
sobre elas é como atravessar um abismo num cabo de aço. Precisa-se a exata noção
do equilíbrio para superar a manifestação vertical da gravidade.
De fato é muito grave que lembre neste dia 19 de outubro que
se completam 15 anos em que a terra que escolheu para ser o seu mundo deixou de
sentir sua presença. Cada um de nós tem o momento exato em que, apesar de ter
continuado seu respirar dificultado, ele comungou a vida em consciência pela
extrema vez.
Quando ele saia de casa para o hospital, eu acabara de
chegar à cidade, na maca mesmo sorriu para mim embora o semblante carregasse o
sofrimento dos momentos derradeiros em sua casa. Os amigos, Cícero, seu
companheiro de jornada agrícola, a Iracema que afinal prolongou a juventude
entre todos através da Paulinha. Ele se foi uma vez que o conforto hospitalar
era o necessário.
No dia seguinte, retornando àquele momento, entro na UTI e
ele me olha fixamente, acompanha os movimentos em volta, retorna ao exame de
minha presença e até esboça algumas palavras. Incompreensíveis, mas ficamos
ambos naquele balbucio impreciso. Tenho a impressão que já não consegue fixar
algo terreno, mas engano-me.
Alguém se aproxima trazendo-lhe o sacramento católico da
hóstia e ele segue perfeitamente todo o ritual. E permanece em posição de mãos
postas, com os lábios balbuciando o que tomo por uma oração e deste momento em
diante, jamais encontrei o olhar dele fixado em algo de modo preciso. Tudo
ficou impreciso, até que tive que voltar e aguardar, à distância, o manifesto
da família.
Nestes quinze anos sem José do Vale Arraes Feitosa a
paisagem do Crato continua em mutação, as pessoas evoluem, a sociedade se
modifica, mas quando deixo o silêncio de filho para falar dele, passo a andar
em terra firme. Fazemos ligações porque a coisas estão no mesmo lugar ou são
contemporâneas, mas não é uma mera associação o fato de que neste ano Luiz
Gonzaga completaria cem anos e tantas comemorações existem pelo Brasil afora.
Quando escuto Luiz em sua narrativa cultural dos sertões por
aí tenho em mãos a alma plena de José do Vale Arraes Feitosa. É preciso ter
conhecido este professor para saber deste lado não intelectual, não docente de
sua personalidade. A seiva pura da caatinga nordestina e seus trezentos anos de
ocupação, especialmente das veredas e dos currais.
Aquele coração adocicado pelo verde da cana de açúcar do seu
Cariri fértil tinha a representatividade de uma vida de sacrifícios, a pobreza,
da viúva lutando para criar os filhos com dignidade e o orgulho de uma
sociedade tão antiga nas terras do alto Jaguaribe. José do Vale Arraes Feitosa,
assim como todos os homenageados, não merecem apenas a citação e nem a presença
dos seus. Eles têm um significado muito além.
A homenagem é meramente pontual, um dia, uma medalha, uma estátua
uma rememoração e isso perde o sentido se não se complementar com a narrativa
da história da sociedade. José do Vale Arraes Feitosa é a narrativa humana,
aquilo que representa o que faremos agora, nestes momentos incertos a tomar uma
decisão, realizar algo que mais na frente se transformará em história.
Neste sentido sair do silêncio das lembranças para falar de
José do Vale Arraes Feitosa é dizer a quem vive que viver é tratar este minuto
como o exemplo dos séculos vindouros. Assim é que se constroem civilizações.
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