quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Momento José do Vale Arraes Feitosa


Lembrar. Em silêncio acompanhar a trajetória no tempo e no espaço do antes, durante e depois. O silêncio explica melhor o húmus da terra quando falamos de pessoas muito ligadas a nossa existência. Expressar algo sobre elas é como atravessar um abismo num cabo de aço. Precisa-se a exata noção do equilíbrio para superar a manifestação vertical da gravidade.

De fato é muito grave que lembre neste dia 19 de outubro que se completam 15 anos em que a terra que escolheu para ser o seu mundo deixou de sentir sua presença. Cada um de nós tem o momento exato em que, apesar de ter continuado seu respirar dificultado, ele comungou a vida em consciência pela extrema vez.

Quando ele saia de casa para o hospital, eu acabara de chegar à cidade, na maca mesmo sorriu para mim embora o semblante carregasse o sofrimento dos momentos derradeiros em sua casa. Os amigos, Cícero, seu companheiro de jornada agrícola, a Iracema que afinal prolongou a juventude entre todos através da Paulinha. Ele se foi uma vez que o conforto hospitalar era o necessário. 

No dia seguinte, retornando àquele momento, entro na UTI e ele me olha fixamente, acompanha os movimentos em volta, retorna ao exame de minha presença e até esboça algumas palavras. Incompreensíveis, mas ficamos ambos naquele balbucio impreciso. Tenho a impressão que já não consegue fixar algo terreno, mas engano-me.

Alguém se aproxima trazendo-lhe o sacramento católico da hóstia e ele segue perfeitamente todo o ritual. E permanece em posição de mãos postas, com os lábios balbuciando o que tomo por uma oração e deste momento em diante, jamais encontrei o olhar dele fixado em algo de modo preciso. Tudo ficou impreciso, até que tive que voltar e aguardar, à distância, o manifesto da família.

Nestes quinze anos sem José do Vale Arraes Feitosa a paisagem do Crato continua em mutação, as pessoas evoluem, a sociedade se modifica, mas quando deixo o silêncio de filho para falar dele, passo a andar em terra firme. Fazemos ligações porque a coisas estão no mesmo lugar ou são contemporâneas, mas não é uma mera associação o fato de que neste ano Luiz Gonzaga completaria cem anos e tantas comemorações existem pelo Brasil afora.

Quando escuto Luiz em sua narrativa cultural dos sertões por aí tenho em mãos a alma plena de José do Vale Arraes Feitosa. É preciso ter conhecido este professor para saber deste lado não intelectual, não docente de sua personalidade. A seiva pura da caatinga nordestina e seus trezentos anos de ocupação, especialmente das veredas e dos currais.

Aquele coração adocicado pelo verde da cana de açúcar do seu Cariri fértil tinha a representatividade de uma vida de sacrifícios, a pobreza, da viúva lutando para criar os filhos com dignidade e o orgulho de uma sociedade tão antiga nas terras do alto Jaguaribe. José do Vale Arraes Feitosa, assim como todos os homenageados, não merecem apenas a citação e nem a presença dos seus. Eles têm um significado muito além.

A homenagem é meramente pontual, um dia, uma medalha, uma estátua uma rememoração e isso perde o sentido se não se complementar com a narrativa da história da sociedade. José do Vale Arraes Feitosa é a narrativa humana, aquilo que representa o que faremos agora, nestes momentos incertos a tomar uma decisão, realizar algo que mais na frente se transformará em história.

Neste sentido sair do silêncio das lembranças para falar de José do Vale Arraes Feitosa é dizer a quem vive que viver é tratar este minuto como o exemplo dos séculos vindouros. Assim é que se constroem civilizações.
     

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