Do Posto 4 em Copacabana, saindo da Constante Ramos,
seguindo por Ipanema até a Afrânio de Mello Franco logo após o Jardim de Alá.
Daí até a Lagoa Rodrigo de Freitas e passando pela sede de Remo do Flamengo,
até um pouco além da sede de Remo do Vasco e entrando na Rua Maria Angélica no
Jardim Botânico.
No varejo, no solado do pé, encontra-se a poupança da fama
da cidade. Ainda em Copacabana o Márcio Braga, ex-presidente do Flamengo, Deputado
Federal e dono de Cartório, teima em andar na ciclovia quando tem o calçadão
inteiro para dividir com outros. Mais à frente o Nilo Batista, criminalista,
ex-Governador do Estado com sua companheira Vera Malagutti. Adiante é o próprio
Cangaceiro, alto, rosto fechado e passo certeiro, passou o Zé Ramalho. O Ruy
Castro arredondou-se e formatou-se como um farto barril de Chopp. Bom a
poupança da fama é vasta, mas não é nos calçadões de Copacabana, Ipanema e
Leblon que minha narrativa ficará.
Logo na chegada à Lagoa, em frente ao Flamengo, avisto
adiante todo o círculo da minha atenção. Uma mulher de estatura mediana, mais
para magra, muito branca e com cabelos louros, quase prata. Veste uma bermuda
creme claro, blusa branca com listras azuis marinho em sentido horizontal, como
estampas de prisioneiros. Os tênis roubam as minhas pupilas: um róseo intenso,
diria que solferino. A cabeça coberta com um chapéu branco, de tecido de modo
que as abas deitam e balançam ao caminhar.
Ela segue num ritmo apressado de modo que é quase impossível
acompanhá-la. Mas tento não perder o contato e sigo com curiosidade. Ela dobra
na ciclovia e passa junto à montagem da Árvore de Natal da Lagoa já muito
próxima de ser iluminada num sábado festivo. Minha atenção continua com a
mulher e por isso percebo que ela se afasta da pista e vai até a beira da água
e joga algo nela. É como se tivesse brincando de jogar pedras.
E vou ao encalço de sua movimentação. O caminhar dela excede
à mediocridade: é um andar vivo, agitado, balançando de um lado para outro e os
ombros com movimentos laterais e verticais. A cabeça pendula independente do
tronco e seu rosto se desvia constantemente aos limites da paisagem, mas
centra-se na margem da Lagoa. E preciso esforçar-me para acompanha-la.
Logo após o Clube Piraquê ela desaparece, mas logo a avisto na
beira da Lagoa jogando algo novamente. Então percebo do que se trata: ela joga
pedaços de pão para as aves que vivem na e da vegetação peri-lagunar: como o
socozinho, o savacu, várias garças e inclusive o biguá. Mesmo com estas breves saídas
eu não consigo chegar perto a ponto e examinar seu rosto. Ela segue na mesma
marcha apressada.
E passo a notar outras características do seu caminhar: o
braço direito normalmente é fixo com a mão segurando o canto anteroinferior de
uma grande bolsa de pano branco onde ela carrega os pães para alimentar as
aves. O braço esquerdo agita-se para frente e para trás e por vezes ao lado se
afastando do seu corpo. Ela é um todo agitado e sai mais uma vez para, igual a
Maria do João e Maria da história de fadas, deitar as migalhas de pão ao chão.
Foi aí que percebi a história. Aquilo tudo tinha um
significado narrativo. Os socozinhos logo que a viram correram em direção a ela
para então receber o alimento. Aí toda aquela observação passou a ter um
sentido. As aves as reconhecem independente de antes ter sido lançado o pedaço
de pão. Elas correm tão logo percebem a aproximação daquela mulher entre
milhares de pessoas que circulam diariamente pela beira da Lagoa. E a
curiosidade atormentou-me ainda mais.
Apressei o passo a ponto de que numa dessas saídas dela pude
ver-lhe o rosto. Uma mulher nas vizinhanças entre a segunda metade dos
cinquenta ou a primeira metade dos sessenta anos. Óculos escuros, rosto de
nariz muito afilado, boca de lábios finos e queixo levemente pontudo, embora a
face fosse mais arredondada do que cumprida, embora magra. Aí fiquei entre a conveniência
ou não de perguntar-lhe se de fato as aves a reconheciam. Mas a estranheza das
ruas é tamanha que é preciso ousadia para não encontrar um dissabor.
Estava naquela curiosidade endividada quando novamente ela
vem apressada e passa ao meu lado e pergunto: eu percebi que as aves correram
assim que ti viram. Elas te reconhecem?
Sim. Logo que me aproximo.
Você faz isso há muitos anos?
Muitos. Mas é preciso usar sempre esse chapéu. Se for outro
elas não reconhecem.
E seguiu no passo apressado dela jogando pão para as aves da
Lagoa. Eu fui maneirando o ritmo, estava chegando a hora de entrar na Rua Maria
Angélica.
Como a Lagoa é circular, igual a um socozinho, espero
encontrar o retorno daqueles pães da vida no próximo dia.
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