“A mim me interessa o
povo, há três séculos capado e recapado, sangrando e ressangrando”. (J. Capistrano de Abreu).
Meu Caro J. Flávio
Vieira
Como escritor lhe
saúdo neste momento, assim o quis os meus pares desta casa.
Não se considerem
desonra as minhas palavras direcionadas para afirmação da inexistência, até a
pouco, de alguém, cuja escrita desse conta das dimensões da cultura, dos
costumes e da história criados pelo nosso povo. Temos sim, um legado de muitos
excelentes escritores, oriundos principalmente da fase áurea dos anos 50,
quando a confluência das bases materiais e humanas da época criaram as
condições para se pensar e fazer a literatura e a história regionais.
No entanto, o discurso
histórico sobre nossas origens valeu-se dos documentos e monumentos produzidos
sob a ótica eurocêntrica de viés evolucionista, e em nenhum momento alguma voz
se atreveu a palmilhar a difícil senda de uma história a contrapelo. Se assim o
fizesse, denunciaria os fundamentos da História marcadamente positivista e mistificadora
das verdades do vencedor. Descobriria o quanto de ruínas trouxe a ideologia da
aceleração do tempo histórico, embutidos na ânsia de “civilizar” povos
distantes dos centros de poder. E como esse processo onde se alinhavam as
ideias dominantes do Reino e da Religião engendrou um mundo desintegrado da
voz, da vez, do tudo ou do nada do outro.
A Literatura em suas
diferentes linguagens acompanhou de certa forma esta racionalização. Sobram
apologias, loas e legitimação aos feitos do branco colonizador. Quando se
procura de alguma forma enaltecer a positividade de nossos povos ancestrais, no
caso, os índios, invoca-se uma condição nula para os primeiros donos daqueles
tristes vales: a de guerreiros. Ora,
quem fez a guerra não foram eles. Os nossos indígenas foram compelidos a ela. Em
condições absurdamente desvantajosas partiram em defesa de sua sobrevivência. Sobrevivência
que falou mais alto quando serviram a forças públicas ou privadas em defesa de
interesses que não eram os seus. Nela, (na literatura) somo felizes, gentis,
passeamos entre canaviais, nos compadreamos com nossos patrões, os grandes nos
permitem a sombra... Este ideal de igualdade mascara a hierarquia que se
implantou na nossa organização social, para dizer que as coisas estão todas em
seus devidos lugares. Então, para que o enfrentamento no plano da crítica
histórica e literária?
Louve-se de bom grado
o discurso da Literatura de Cordel. De certa forma a Literatura de Cordel foge
desse viés consensual quando exprime, à guisa de reportagem, o drama do sido confrontado
na trama da utopia e da realidade. Aqui a narrativa põe para enxergar “o outro
olho de Lampião” da História, metáfora para dizer que o que estava ofuscado na
narrativa da História do vencedor, de repente aparece translúcido e falando, e
dizendo, porque foi trazido para isto pela coragem do escritor que se
desvencilhou das amarras ideológicas da História de mão única. Aqui aparece a
festa, a alegria, a maldade e a bondade dos desejos humanos porque quebra o
plano de uma história única e permite a inserção de outras histórias, onde se
encontra a realização da utopia.
Nesse plano de circularidade
plena dos personagens do sido ou do acontecido, ou seja, do outro reprimido
pela História, acredito situar-se a escrita do homenageado, o escritor cratense
J. Flávio Vieira. Essas observações, currente
calamo, sobre a narrativa cordelista, no meu entender, estão presentes na
obra de nosso escritor.
E mais: Ele entroniza
na Arte Literária em nosso meio a outra forma de dizer o mesmo. Para tanto
adota com muita sabedoria um instrumento da Arte Literária – a alegoria (*), justamente no sentido
de “dizer o outro”. E assim o fazendo ilumina a História, confere brilho ao que
era opaco, desencanta o que estava encantado, introduz a alegria do outro, - do outro que não conta, mas estaria ali
ajudando na construção de Tebas, na construção
da Cidade de Deus, na construção de Aimará, de Matozinho, de Craterdan; o outro de carne e osso, que fala, que age e que faz
esta terra onde “há lugar para todos aqueles de boa vontade”, porque foi
trazido para isto pela coragem do escritor que se desvencilhou das amarras
ideológicas da História de mão única.
Essa passagem de seu
livro “O Mistério das treze portas no Castelo Encantado da Ponte Fantástica”,
quando a serpente fala para um atônito Mateu, solitário de uma história que se
realizou como utopia, é exemplar:
Mateusss, o que dá alma a um Reino não ssão os prédiosss, as
roçasss, os pássarosss, os riosss. Nem o povo. Muitosss habitantesss não têm
uma identidade própria e, como uma cabaça sssolta no rio, ssseguem, sssem
parar, o curso das águasss. Um Reino, como uma pessoa, precisa de um
essspírito. E quem preenche o essspírito de um Reino sssão figurasss
encantadasss e especiaisss: poetasss, profetasss, beatosss. São elesss que guardam
consigo o encantamento de um reino. Essesss são a chave de sssuas alegrias e de sssua felicidade”...
E conclui: “Encantadasss todasss asss pessoasss mais importantesss Aimará
ficou sssem sssuas fadasss e ssseus duendesss e, sem elesss, o Reino perdeu a
cor, o aroma e o sabor”.
Eis a grande
contribuição do autor para a reflexão da interface da Literatura e História: a
flexibilização da narrativa para concretizar outras possibilidades do que
poderia ter acontecido. Com isto, aparecem os outros, “todos os outros
possíveis à História, tornando, ‘possíveis’ até mesmo os impossíveis da
História”.
Finalizando, os
escritos J. Flávio Vieira tem necessariamente um refinamento da visão
antropológica sobre as coisas do mundo, naquilo que ela tem de mais includente
– o servir para pensar. O que ele propõe e o que exprime através de seus
personagens, para mim, expressa o sentimento de um escritor que não tem lados,
mas que tem princípios.
Prof. e Historiador Zé Nilton Figueiredo
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