- O homem porque o homem é muito feroz. O homem é feroz. O
homem é mais feroz do que os outros animais. O homem é capaz de tudo. O homem
destrói outro ser humano. O homem não tem medo de nada não. Só a Deus.
- Mas você acha que ele teme a Deus?
- Rapaz tem uns que temem. Pelo menos eu temo.
- Mas não tem uns cabras que fazem uns negócios tão errados
que parecem que não temem nada?
- A maioria não é Mudinho?
- A maioria é contra Deus, mas Deus não é assim não. Tem que
temer a Deus.
- Mas me convença disso! Dê um argumento forte!
- É porque Deus tem poder e nós não temos poder. Deus é quem
dá o poder a nós. Nós tem coragem. Nós somos corajosos. Mas não temos poder.
- E o que é o poder?
- O poder sabe o que é que é: a gente carrega dentro de si. Porque
a gente tem aquele poder em Deus. Tem aquela certeza que Deus comanda nós.
- Então você quer dizer que o poder é a certeza?
- É a certeza.
(entrevista com Raimundo Castro dos Santos – Mudinho – pescador de
Paracuru)
Sobre a grande dificuldade de Agostinho decifrar o mistério
da Santíssima Trindade. São três Deuses distintos e Um só verdadeiro. Mistério
metafísico, da identificação da essência, ou seja, do indivisível ser. O limite
do conceito de Pai, Filho e Espírito Santo. A essência de três seres numa
impossível ponte com a unidade da substância divina.
Na verdade Tomás de Aquino havia posto a trindade numa
relação: envolvendo numa única relação o amor (espírito santo), o filho e por
necessidade o pai. Tomando a questão nesse ponto do tomismo, esquecendo o
dogmatismo da igreja que pretende “roubar” o poder de Deus para exercê-lo em
nome dele, vamos abandonar o mistério insolúvel (ou dogmatismo do mistério que
alimenta os doutores bibliófilos da igreja).
Aí um pescador de Paracuru, leitor do livro das marés
enchentes e vazantes, a despescar currais de peixe, plantar legumes nas
vazantes, amar as mulheres e fazer filhos, devolve a Deus o poder que apenas a
ele cabe. Perceberam a lógica simples? Se todos os homens são ferozes, destroem
uns aos outros, é impossível entre eles uma solução de poder que faça a
intermediação de todas as ferocidades destrutivas. A construção é impossível
nesses termos. Nestes termos só resta a relação entre escravagistas e escravos,
sem brechas na atenção, a qualquer momento o escravo apunhala o senhor.
E a solução de poder possível é aquela da igualdade, que
também é irmandade e por isso mesmo de filhos semelhantes junto ao pai. A linha
que revela a absoluta igualdade entre todos é o amor (espírito santo) que
representa a terceira pessoa da solução de poder possível. É pelo espírito do
amor que nenhum filho pode ter herança maior que os outros, a partilha do pai é
a própria natureza da igualdade.
Por isso quando as igrejas são questionadas, não o espírito
do amor e da igualdade, tome-se o pensamento milenar de Mudinho como igual a
Tomás de Aquino ou à solução implícita do messias dos Judeus, sem que eles se
dessem conta da contradição que a boa nova era a igualdade e não o povo
escolhido. Do mesmo modo são questionadas todas as soluções de poder que não
façam efetivamente a mediação da ferocidade humana.
Acumular riquezas, hierarquizar o poder, o individualismo
predatório, em nome de si mesmo é a dinâmica da ferocidade e da destruição do
ser humano pelo ser humano. Por isso mesmo desde Spartacus que as classes
populares exploradas retornam com coragem que atesta óbitos.
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