PEDRO: de Satanás a Bom
Pastor
“Em verdade, em verdade, eu te digo:
quando eras jovem, amarravas o teu cinto e andavas para onde querias; quando
ficares velho, estenderás as mãos e um outro atará o teu cinto e te conduzirá
para onde não quiseres” (Jo 21,18).
Teólogo e Biblista, Dr.Francisco Salatiel |
Se o Papa,
bispo de Roma, exerce o ministério petrino, seria bom refletir sobre o
exercício dessa função de serviço à unidade da Igreja, meditando a partir de
alguns textos bíblicos. Assim, o espanto com a renúncia de Bento XVI, 265º. sucessor
de Pedro, torna-se mais compreensível. Pois o Senhor, ao confiar-lhe um posto
de liderança no colégio dos 12, sem dúvida não seguiu critérios da lógica
humana do sucesso, da eficiência administrativa nem da capacidade de
convencimento própria de oradores famosos. Pedro era um simples pescador, pé de
chinelo ou de sandálias – símbolo mais condizente com o seu estofo social do
que o anel dos príncipes e reis – embora se apresentasse cheio de ímpeto e
espontaneidade tanto na famosa confissão de fé no Messias, em Cesaréia de
Filipe (Mc 8,29), quanto na negação diante das empregadas do Sumo Sacerdote (Mc
14,66-72). Homem contraditório, capaz de jurar fidelidade ao Mestre (Mc
14,29-31; Jo 13,36-38) e, logo em seguida, negá-lo. A figura simbólica que
Jesus lhe imputou de maneira enérgica: “Afasta-te
de mim, Satanás, pois teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens”
(Mc 8,33), mostra-se bem apropriada a esse personagem nada certinho, com a
carapuça do opositor e inimigo máximo dos planos de Deus: Satanás. Ora, para a mentalidade bíblica de então, quem era Satanás
senão o pai da mentira (Jo 8,44), da dissimulação, da hipocrisia (1
Tim 4,1-2), agente de morte e não de vida (Sab 2,24)?
E quem disse
que o comportamento de Pedro mudou, mesmo tendo recebido a força (dynamis) do Espírito Santo no
Pentecostes? O episódio narrado por Paulo em sua carta aos Gálatas (2,11-14)
ilustra muito bem esse lado obscuro da personalidade de Kephas: o dissimulador, o hipócrita. Aquele que “não se comportava, não andava corretamente (uk
orthopodousin) segundo a verdade do
Evangelho (Gal 2,14), induzindo a outros e até mesmo a Barnabé neste ato de
hipocrisia (hypokrísei: Gal 2,13), ou
seja, na incoerência com o que fora acertado no Concílio de Jerusalém para a
abertura da Igreja nascente aos incircuncisos. Qualquer semelhança com os
tempos atuais é mera coincidência!
O lava-pés,
que na versão joanina da última ceia substitui a instituição da eucaristia,
narrada pelos sinóticos e pela 1ª.carta de Paulo aos coríntios, apresenta mais
uma vez esse lado contestador e adversário de Pedro que não queria que o Mestre
– como servo humilde – lavasse seus pés. Ao que Jesus lhe replica: “Se eu não te lavar, não poderás ter parte
comigo” (Jo 13,6-11). João, o evangelista das dicas simbólicas, narra o
gesto de Jesus antes da doação do mandamento novo (Jo 13,34-35) como que a
indicar que é preciso estar preparado (puro, na linguagem bíblica), a fim de
poder caminhar corretamente (orthopodein
– Gal 2,14), sem vacilar os pés. Isso é bem mais importante – uma ortopráxis – do que a obsessão pela ortodoxia. A ortodoxia (dóxa) faz parte muito mais das opiniões
variáveis e combiantes até mesmo quando se formularam, ao longo da história, os
dogmas mais veneráveis, os credos que
recitamos em nossas celebrações.
O ministério
petrino, portanto, voltado à unidade da Igreja e à confirmação da fé dos irmãos
(Lc 22,32), é exercido sob a condição sine
qua non da conversão: “Quando te
converteres” (Lc ibidem), ou
seja, mesmo quando cair sob as ciladas de Satanás, dos pensamentos e
preocupações humanas, o Senhor não o desamparará e, qual advogado (Paráclito),
o defenderá, rogando por ele (Lc 22,31). É por isso que, não sendo nenhum
super-homem, conhecerá como todos os humanos o declínio da juventude para a
velhice, incapaz de tomar a iniciativa das decisões mais comezinhas ou do
próprio rumo da vida, sem poder mais andar (peripatein)
para onde bem gostaria (Jo 21,18). Ao entregar-lhe o pastoreio de seu rebanho,
o Senhor também lhe mostrou em perspectiva o final de sua existência.
A renúncia
de Bento XVI, um teólogo que jamais se separou das fontes bíblicas e
patrísticas, não se situa na encruzilhada apenas de intrigas e conspirações
palacianas na Cúria Romana, mas naquela outra da lucidez evangélica e paulina
que tem Jesus de Nazaré como parâmetro de vida por excelência. Os fracassos, o
humilde reconhecimento da própria impotência na condução do papado, podem
produzir a reviravolta necessária para a mudança da Igreja, servidora de um
Senhor que se faz escravo, longe da prepotência e da ostentação deste mundo.
(publicado com autorização do autor)
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