Quando do ajuntamento dos “Apontamentos para a história mítico-sentimental
de Matozinho”, que terminaram publicados
em 2007, notamos uma pasta vermelha à parte, separada cuidadosamente no meio
dos manuscritos, etiquetada com letras garrafais : “Cuidado!” No processo de
pesquisa, terminamos por abri-la, não
sem algum receio, e encontramos no
interior a razão pela qual o colecionador as havia reservado. Tratavam-se de
histórias apimentadas da vila, puxadas para o erótico e o fescenino e, certamente, meu velho tio as isolou,
temendo identificarem-se alguns dos personagens e, também, resguardando um
certo pudor: poderiam cair nas mãos de moiçolas púberes, de crianças ou ferir
sensibilidades moralistas e religiosas. Aquilo parecia quadrinhos de Carlos
Zéfiro ! O certo é que o receio do meu
tio contaminou-me e, no processo de seleção dos textos do “Matozinho vai à Guerra”, preferi manter o pundonor do meu
parente e deixei a pasta vermelha intocada. Os anos passaram-se e, pouco a pouco,
fui percebendo que já não existiam razões
para tanto pejo. O BBB jogou no ventilador toda a intimidade da alcova, as
novelas escancararam o último reduto da decência, os adolescentes produzem seus
próprios vídeos pornôs e expõem no You Tube. A pasta vermelha, hoje, parece até
um catecismo, pode ser publicada até em livrinhos de missa de sétimo dia.
Recentemente,
reabri a pasta vermelha , reli alguns textos e resolvi publicar alguns que me
pareceram mais picantes. Em dias de hoje, sei que não existe mais o perigo de o
leitor degustá-los e comungar em seguida. Não há mais o risco de a hóstia
sagrada ferver na língua como um sonrisal. Pois aí vai a primeira dessas
histórias.
Ah, os homens ! Eternos atores no palco dessa
vida! Põem máscaras, vestem-se de ricos figurinos e encenam continuamente
aquele papel que os tornam mais reconhecidos e admirados pela platéia: o de Rico,
bonito, inteligente, compreensivo, valente,
bondoso, caridoso, virtuoso, santo ! Durante toda existência, buscam, incansavelmente, aperfeiçoar este
personagem perfeito que aqui e ali termina por mostrar outras facetas e arestas
bem menos admiráveis. Só existem dois lugares em que a máscara cai, a maquiagem
é removida e as fraquezas e deformidades aparecem sem a magia do palco : o Bar
e o Cabaré. Aí o homem é apenas o homem, com seus anjos e demônios bem
aparentes. O Bar e o Cabaré são o camarim da cidade ! Assim, as cafetinas e as putas conhecem como ninguém a alma de
uma vila. Têm a perfeita dimensão de onde começa e termina a santidade de cada
um de nós; conhecem as mínimas fraquezas, taras e deformidades dos habitantes ; preenchem com amor
o vazio de tantas solidões. Claro que com um amor negociado, mas existe
alguma coisa sem preço e código de barras numa sociedade de consumo ? O velho “Boca Boa” ,em Matozinho, já havia chegado à conclusão que o amor é puro
devaneio. Chegue eu – diz ele—com cinqüenta reais na Rua do Caneco Amassado !
Sou tratado como rei, vou ser amado e idolatrado ! Agora vá eu liso, como muçum ensaboado ! O
amor existe sim, mas é tabelado, meu senhor !
Existem,
no entanto, interpretações diferentes sobre a teoria do nosso “Boca Boa” . No
governo de Sarney, talvez os mais novos não lembrem, mas o preço dos produtos
foi tabelado. Quebrando todas as regras
da economia, não era permitido majorar o preço de qualquer item, sob pena de
prisão. Como era de se esperar, os víveres desapareceram das prateleiras e
começou a se estabelecer um mercado paralelo, misterioso, baseado na eterna lei da oferta e da procura.
Em Matozinho, os magarefes começaram a aumentar o preço da carne. Houve
denúncia, a polícia se mobilizou, invadiu o mercado municipal e prendeu os
insubordinados. Estabeleceu-se a maior algazarra, já fora do prédio, com os
soldados algemando os revoltosos e metade da população observando e comentando.
Nisso, atiçada pelo barulho, “Das Virgens”, uma das mais tradicionais quengas
da Vila, chegou em meio à balbúrdia, buscando informações sobre o que estava
acontecendo.
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Que putaria é essa? O que diabos tá acontecendo ?
Uma
das suas pariceiras ,que estava no meio da multidão, explicou :
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É a polícia que está prendendo os magarefes !
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Oxente! Mas por que ? Cons seiscentos !
E que diabos foi que eles fizeram? – Quis saber Das Virgens .
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Eles aumentaram o preço da carne e num pode! A carne tá tabelada !
Das
Virgens, surpresa, saltou um suspiro de alívio e comentou alto como se
estivesse numa difusora :
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Ave Maria ! Ainda bem que priquito num
tá tabelado, meu deuso !
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Gumercindo
Carabina trabalhava como vendedor numa loja de confecções em Matozinho, chamada
de “Cambraia de Linho”. Gugu , como era
conhecido pela gandaia, era casado, tinha uns dez filhos, mas era viciado num
Cabaré. Escapava para lá sempre no horário de almoço que não dava tanto na
vista. À noite estava sempre com a família, como um fiel e exemplar cidadão! Gugu tornou-se freguês preferencial de um cabarezinho
na Rua do Amassado, naquele último lugar
para onde acorriam as putas já idosas e sem fama e que se conhecia pelo nome de
“Farinhada”. A intimidade era tanta com “Santinha”, a sua predileta, que ele
pagava por mês, como se fora o aluguel de um imóvel. Um dia, em plena
hiperinflação em fins do Governo Sarney, após terminar a transa com Santinha,
Gumercindo se arrumava para voltar ao expediente da tarde no “Cambraia”, quando
foi despertado por ela da terrível situação econômica do país:
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Ei, Gugu ! Tu vem amanhã ? Num se esqueça , não, viu ? Cu subiu !
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O
velho Sinfrônio Arnaud gostava de freqüentar o Bar conhecido por “Pentelho de Ouro”
, na mais mal afamada rua de Matozinho. Arnaud freqüentava por pura mania,
gostava do ambiente, das conversas e da proximidade das meninas de difícil vida
fácil. Já não tinha idade para maiores danações e libações eróticas, mas
restara nele aquela mania, aquele clima despojado do lupanar. Um dia, entre uma e outra dose de
pinga, ouviu uma confusão danada na rua. Vinha das bandas da “Farinhada”.
Deixou o copo no balcão, por um momento, e saiu à porta para testemunhar o
arranca-rabo. Viu, então, Jojó Fubuia, no meio da rua, tentando correr, ainda assungando
as calças e, logo atrás, uma quenga robusta, com uma trave da porta na mão,
sentando a pua no pobre do Fubuia. Sinfrônio ficou penalizado com a situação do
mais famoso deodato da vila. O que teria
acontecido ? A confusão veio de lá, na direção de Arnaud, o pau comendo no
centro : a quenga como um carcará atrás do pau d´água, a trave voando solta,
Jojó tentando escapar como podia. Ao passar , por fim, pelo bar, a puta parou
um pouco e explicou, por fim, as razões mais que justas para a surra :
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Coronel, veja se eu não tenho razão ! O
senhor já ouviu falar, em algum lugar do mundo, em cu fiado ? Já ?
Cunegundes
Pé-de-Pato veio a Matozinho, na intenção
de fazer um empréstimo agrícola. Ano
eleitoral, antes do período invernoso, o Banco do Brasil montara um pequeno
posto temporário para ajudar , segundo divulgavam os políticos, os
agricultores. Cunegundes já tinha mandado um mundão de documentos e viera
naquele dia, pois havia a promessa da
liberação da verba. Enfrentou uma fila danada, depois um chá de cadeira de mais
de duas horas e, finalmente, botou a mão na bufunfa. Não era muito, uns
quinhentos cruzados, dava para comprar, talvez, umas duas vaquinhas. Dinheiro
no bolso, pensou em voltar para Bertioga, mas já não havia, àquela hora, sopas disponíveis. Dirigiu-se , então, à Loja “Cambraia
de Ouro” e procurou seu amigo Gumercindo. Explicou-lhe a pendência e
perguntou-lhe onde poderia pernoitar . Gugu, como era de se esperar, deu-lhe
uma idéia genial: O Cabaré de Maria Justa, o mais requintado de Matozinho.
Cunegundes gostou da dica e partiu para
lá. Estabulou conversa com uma das meninas, uma loirinha bonita, reboculosa,
perna grossa e bunda tanajúrica. Conversa vai, conversa vem, após umas doses ,uma
dancinha bochecha com bochecha e uns entrelaçados dos pés de pato de Cunegundes
com os troncos de aroeira da loirinha, terminaram na noite de núpcias. Pela
manhã, acordou um Cunegundes feliz e realizado. Arrumou-se e, depois, lembrou
que cometera um erro primal: não havia acertado o preço previamente , coisa
quase impossível de acontecer com os atilados bertioguenses. Cunegundes, então,
algo temeroso, pediu a conta :
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Foi muito bom ! Quanto tô devendo, meu bem ?
A
loirinha, ainda deitada, refazendo-se um pouco sob os lençóis, respondeu-lhe
com voz sensual como locutora de aeroporto:
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Cuné , eu cobro trezentos cruzados ! Mas para você, que é um freguês tão bom
e parece um jumento fogoso na cama, vou cobrar só duzentos
e cinqüenta, tá bom?
Pé-de-Pato
não pode conter a surpresa! Lá se ia metade do seu empréstimo, só numa noite.
Conteve-se um pouco, mas soltou :
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Duzentos e cinqüenta, mas não tá muito caro não, minha filha ?
A
loirinha, não se enrolou:
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Cunezinho, tá tudo pela hora da morte ! Agora mesmo a gasolina subiu!
Cunegundes
meteu a mão no bolso, contou as cédulas com uma pena danada e pôs em cima da
camareira. Quando abriu a porta para sair, a loirinha, feliz, perguntou
interessada:
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Filhinho e agora quando você volta ? Quando te vejo de novo ? Já tô morrendo de
saudade !
Pé-de-Pato
fechou a porta lentamente, enquanto mandava-lhe a resposta:
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Desse preço não dá ! Só volto agora quando você botar um priquito a óleo ou a
gás butano !
J. Flávio Vieira