sexta-feira, 10 de maio de 2013

Enxugando gelo



Vocês já devem ter percebido a grande polêmica que invade as redes sociais. A Frente Nacional de Prefeitos,  desde o início do ano, vem pressionando o Governo  com o fito de contratar médicos estrangeiros para atender ao SUS, principalmente nos grotões mais inóspitos do país. Existe, pois, uma mobilização no sentido de contratar seis mil médicos de Cuba e Portugal,, principalmente, na busca de solucionar essa demanda historicamente consolidada.  Diversas Entidades Médicas, capitaneadas pelo Conselho Federal de Medicina, se puseram , imediatamente, por razões técnicas, contrárias à iniciativa. A Direitona brasileira, por sua vez, range os dentes e espuma,  sempre que soa o nome Cuba nos ares. Nem lhes interessa muito discutir a questão, pensa , imediatamente, que Fidel está vindo com seus guerrilheiros invadir o país  e comer criancinhas.  Há razões plausíveis do lado das entidades médicas, dos prefeitos e do Governo Federal para adotarem uma ou outra postura. Interessa-nos dissecar anatomicamente o problema e tentar encontrar caminhos em meio ao tiroteio de lado a lado. Até mesmo porque , exatamente no meio do fogo cruzado, encontra-se a população mais necessitada, sempre baleada,ferida  mas, mesmo assim,  usada como massa de manobra nessas intrigas e arranca-rabos dos cachorros maiores.

            O Brasil tem hoje 400.000 médicos , uma proporção de exatamente dois esculápios para cada 1000 habitantes: o dobro da necessidade mínima preconizada pela OMS.  A grosso modo esta estatística demonstra que temos profissionais suficientes no país para atender a nossa população. Existem, no entanto, filigranas que precisam ser avaliadas. Possuímos, por outro lado, um grande problema de distribuição. Os médicos no Brasil, na sua maioria, residem nos  grandes Centros , nas Capitais, no litoral.  72% desses estão fincados nas Regiões Sul e Sudeste. Em São Paulo existe um médico para cada 239 habitantes, em Roraima um  para cada 10.306 almas. No Amazonas, um estado de enorme dimensão territorial,  88% dos médicos residem em Manaus. O acesso aos cuidados médicos depende assim, intrinsecamente, da nossa geografia. Se você mora no interior do Brasil e nas regiões Nordeste e Norte certamente se verá em grandes dificuldades quando precisar de consultas, exames ou internamentos. Vamos, amigos, para ter uma visão mais abrangente, tentar entender a perspectiva de cada uma das partes envolvidas .

            Os governantes dos estados com menor oferta de médicos se vêem politicamente cobrados pela população, no sentido de ampliar a oferta de profissionais. Acossados pela desassistência e sua inevitável conseqüência nas urnas, pressionam as esferas superiores no sentido de minorar o problema. Eles sabem, perfeitamente, que não é apenas o salário ofertado o imã suficiente para atrair profissionais: a questão é bem mais complexa. Compreendem que o grosso do atendimento está sendo feito por pajés, meizinheiros, “cientistas”, balconistas de farmácia, rezadores. Todos sem nenhum diploma que pudesse ser revalidado. Depreendem daí , rapidamente, que qualquer médico, com qualquer nível de qualificação, é melhor que médico nenhum.

            As Entidades Médicas, que têm a função precípua de regulamentar a atividade no país,  não se sentem capazes de validar diplomas estrangeiros , sem saber , realmente, como o profissional foi formado e qual seu nível de qualificação. Mais cedo ou mais tarde, fechando os olhos para isso, percebem que os Conselhos se verão atulhados de processos éticos e penais , o que termina por colocar ( bons e maus profissionais)    na mesma corda bamba, como farinha de um mesmo angu indigesto.

            Já o  Governo Federal, de há muito , tem se incomodado com essa realidade da má distribuição de médicos no país. Desde a famigerada Revolução de 64, vem fazendo proliferar as Escolas Médicas no Brasil. De 2000 a 2010 as Faculdades de Medicina dobraram por aqui. Na sua maior parte, privadas. Hoje temos quase duzentas. Ingenuamente,  imaginavam nossos governantes que inflacionando o mercado de profissionais, a competição aumentaria e a distribuição se faria imperiosa. Não foi isso que aconteceu. Até os médicos estrangeiros em atividade por aqui estão mais concentrados no Sul e Sudeste. Médicos aqui se formam para tratar quem pode pagar. Formam-se especialistas e não generalistas: apenas 0,5 % dos médicos brasileiros são especialistas em Medicina Preventiva e Social. E mais : preparam-nos  para tratar e não para prevenir.  Ademais, o governo interroga as Entidades Médicas : Por que exigir qualificação dos estrangeiros apenas ?  O PSF no Brasil se compõe, basicamente, de  médicos  recém formados e aposentados. Passariam no teste do Conselho Federal ?  é importante lembrar que  o Governo traz junto o apoio da Organização Pan-Americana de Saúde ( OPAS) e há uma verdade indiscutível: no que tange à Medicina Preventiva , os médicos cubanos são extremamente bem capacitados.

                        Os médicos brasileiros, por sua vez,  isoladamente ou em grupo, protestam contra a contratação dos estrangeiros. Defendem uma certa reserva de mercado.  Poucos, no entanto, por qualquer preço que lhes fosse oferecido, com a maior estabilidade possível, deixariam o conforto da beira mar e dos recursos mais modernos que a Medicina oferece, para se enfurnarem, como bandeirantes, naquilo que chamam de fim de mundo. As novas gerações de esculápios são muito mais cartesianas que hipocráticas.

                        O mais importante, no entanto, ao meu ver é o entendimento que qualquer solução que se tome, com ou sem estrangeiros, é perfeitamente emergencial e temporária. Os médicos estrangeiros , se vierem, não ficarão definitivamente e, mesmo se receberem visto permanente, que garantia teremos que permanecerão nos grotões do Brasil ? A grande pergunta que permanece no ar é : como fixar nossos esculápios em todo o Brasil, com uma distribuição de profissionais menos perversa ? Como diminuir a volatilidade nos PSF ? Se é o mercado a grande fábrica das vocações médicas, é para ele que nos devemos voltar. Não é tão-somente o salário que atrai o médico. A coisa é bem mais complexa e passa por estabilidade no emprego, possibilidade de ascensão  funcional, qualidade de vida , horizontes amplos de exercício de  uma Medicina moderna, com formação continuada. Precisaríamos, assim, ter uma carreira federal , de preferência com dedicação exclusiva, regulamentada trabalhisticamente, com começo, meio e fim claros e, mais, salário muito atraente para oferecer aos nossos médicos do Programa Saúde da Família. Teríamos a possibilidade de revitalizar a especialidade de Médico de Família e  de Medicina Preventiva e Social. Já tivemos algo parecido na história com a Fundação SESP. O grande gargalo parece ser, mais uma vez, o subfinanciamento da Saúde. Só no Ceará necessitaríamos de algo em torno de 2300 profissionais.

                        O SUS, com todas as críticas que se lhe faça, conseguiu, em pouco mais de vinte anos, mudar radicalmente para melhor nossos Indicadores de Saúde. Doenças de controle Vacinal desapareceram, a Mortalidade Infantil teve um decréscimo vultoso, a Esperança de Vida melhorou de forma impressionante. Já pensou se houvesse orçamento suficiente ? Continuamos, em algumas questões como a da distribuição, a malhar em ferro frio: não tocamos nas raízes mais profundas dos nossos problemas. Com ou sem estrangeiros,   ainda permanecemos enxugando o gelo na esperança inglória de um dia secá-lo, agora com toalha importada.

J. Flávio Vieira

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