O pensador francês
Claude Levi-Straus na primeira metade dos anos 80 do século passado publicou um
pequeno livro chamado A Oleira Ciumenta. Neste que foi um dos seus últimos
livros, analisando o trabalho de ceramistas dos povos americanos identifica uma
série de mitos que depois, segundo ele, foram tratados como achados originais da
psicanálise. Na verdade Levi-Strauss defende que a maioria dos mitos tratados
na psicanálise já pertenciam ao universo dos povos primitivos que viviam em
sociedades culturalmente de caça, coleta e de uma agricultura puramente de
sobrevivência.
Aquela arte que foi
objeto das análises do pensador francês é questão principal em mais este texto
sobre o chile: a cerâmica. Ou a “alfarería” como a fala hispânica costuma
adjetivar, embora nesta língua cerâmica se refira a técnicas mais refinadas com
várias cocções, com esmaltamento da peça e de acabamento mais sofisticado. De
qualquer modo a nossa arte popular com cerâmica seria qualificada como uma “alfarería”.
E aí reside uma das
questões mais agudas do nosso tempo: a aproximação e o desprezo em relação às
artes oriundas dos povos desde os tempos mais primitivos em relação ao
mercantilismo e ao capitalismo. Na verdade a civilização europeia se fez em base
ao comércio mundial e à produção industrial. Por isso os valores econômicos das
mercadorias são determinados pela produção, pelo trânsito e ponto de venda
comercial.
Por isso vasos de
cerâmica chegados aos portos brasileiros ou chilenos oriundos do comércio
inglês, francês ou americano sempre tiveram maior valor do que aqueles modelados
pelas mãos em argila dos próprios países. A cerâmica popular normalmente nesta
escala é visto como de menor valor e não enfeitam as prateleiras das casas de
classe média ou dos ricos.
E desse modo fomos
encontrar uma grande exposição da cerâmica Quinchamalí no Centro Cultural
Gabriela Mistral. Os jovens e o pessoal de classe média que visitava a
exposição olhava as inúmeras peças com um sentimento entre o estranhamento aos
padrões do design de consumo dos shoppings e uma vaga memória ancestral porém
centrifugada pela atual padronização.
Quinchamalí é um
povoado localizado no sul do Chile e que fica a 31 Km da cidade de Chillán.
Estes oleiros produzem um cerâmica tracionalmente de cor negra, de aspecto
brilhoso e que adquire o tom negro pois é cozida com bosta de cavalo. As peças
são típicas com uma base que lembra um vaso ou a base de ums quartinha de água
e em cima as cenas humanas, animais e plantas.
Além do tom preto da
peça ela é decorada com motivos vegetais desenhados com incisões no barro e
pintados em cor branca ou com outra cor que se destaque no fundo. Os oleiros de
Quinchamalí se originaram nos povos Mapuche e como em toda as américas as peças
tinham originalmente sentido utilitário como recipientes de água e panelas. No
princípio do século XIX é que surgiram as garrafas com formas humanas e animais
e por volta de 1850 uma figura típica desta arte é a guitarrera, um símbolo da mulher camponesa chilena. Depois aparece
a louça artística como brinquedos e novas figuras zoomorfas que se inovam em
relação às formas tradicionais.
No GAM vimos a
exposição de 261 peças da coleção do Museu de Arte Popular Americano da
Faculdade de Artes da Universidade do Chile (aliás onde se encontra o Museu de
Arte Popular do Cariri e arredores nas nossas universidades estadual ou
federal?). O título da amostra se identificava como “Quinchamalí no Imaginário
Nacional” e tem duas marcas fundamentais.
A primeira é o quanto a
arte popular se tornou um objeto do desejo das classes médias mais afetas a um
chamamento intelectual. Na parede de entrada da exposição havia um texto
primoroso de Pablo Neruda tratando do valor cultural e artístico da arte
Quinchamalí usando de todos os artifícios de encantamento do consumo: dizendo
ter tomado conhecimento de algumas peças através de um grande museu de Nova
York. Certamente isso ilumina os desejos dos urbanos afastados dos seu povo.
A segunda é como uma
arte popular se projeta no trabalho artístico e faz nascer uma força estética
tomando por base sua estrutura. Assim como em Caruaru até hoje se cultua o
Mestre Vitalino e no Cariri as duas Ciças como fundadores autorais de uma
estética da nossa cerâmica, entre os Quinchamalí se destacou uma artesão
chamada Práxedes Caro. Não tenho espaço para reproduzir seu impressionante
testemunho de liberdade e decisão sobre seu corpo e destino como mulher.
Nesta linha da estética
veio o grande gravador Nemesio Antúnez, artista chileno de expressão formal na
arte mundial, que mergulhou na forma e na expressão da cerâmica Quinchamalí.
Quem ainda for ao Chile até 23 de junho bem poderia dar fugidinha daquele
circuito turístico tradicional e ir ao Centro Cultural Gabriela Mistral (GAM) e
aproveitar para abrir o coração ao povo. Quem ficar neste friozinho das nossas
madrugadas caririenses estimule-se a ir ao Centro de Artesanato Mestre Noza ou
outros que desconheça e ali observar a originalidade popular. Sempre será um “descarrego”
deste pesado mundo pequeno burguês em suas gôndolas de consumo fugaz.
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