J. Flávio Vieira
Tardezinha.
Beira de praia. O sol sangra distante ao som rítmico das ondas que se espedaçam
na areia . Preamar. De quando em vez, o
chuá-chuá mântrico é entrecortado pelo agudo grito das garças riscando os céus.
A moça sentara-se num banco e observava tudo, atentamente, como testemunha privilegiada,
o espetáculo. A paz e a beleza do mundo
como que se transportavam para dentro dela: arrefeciam um pouco seus muitos
conflitos interiores, como se lançassem água fria na fervura. De repente, um
menino se aproxima da mocinha. Carregava lá seus dez anos distribuídos num
corpo franzino, bronzeado, vigiados por
olhos vivíssimos. Trazia , embaixo do braço, uma pequena tabuleta onde prendera
um pedaço de cartolina e, na outra mão, um crayon. Ela percebeu, claramente,
pela conversa que se seguiu, que a necessidade o havia apeado cedo da inocência
e das fantasias infantis. Parecia uma fruta que se tivesse colocado no
carbureto pra antecipar o amadurecimento.
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Moça, você não quer que eu pinte seu retrato ? São só dez reais e vai ficar
muito bonito !
Por
baixo da cartolina branca, trazia , então, vários modelos já pintados anteriormente e que
usava como publicidade. Apresentou-os pausadamente à cliente. A mocinha, de
início, resistiu à investida, mas o menino carregava muitas artimanhas e
técnicas de sedução.
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Dez reais não é nada! A senhora é tão
bonita que eu devia era fazer de graça ! Juro que pintaria, se não estivesse precisando pagar uma continha
na barraca ali de seu Anfrízio!
De
alguma maneira, o garoto sabia que a
beleza da paisagem, àquela hora,
imantava todos de um sentimento
de permanência, de eternidade. Como se o crayon tivesse a capacidade de tornar
sólido, o etéreo daqueles instantes, fossilizar a efemeridade daquele momento
mágico. Talvez, por tudo isso, a mocinha tenha acedido.
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Tá certo ! Mas quero sair linda, viu ?
O
pintor sentou-se no chão, diante da moça
refestelada no banco e, rápido, começou a esboçar os contornos do rosto, tendo
no segundo plano: algumas nuvens e um projeto de lua cheia. Usava os dedos e o dorso da mão para espalhar,
aqui e ali, a tinta e uma borracha para
eventuais correções. Conhecia os mistérios da profissão e percebia que toda
mulher, nesse mundo, se acha mais bela do que aparenta. Entendia, pois, na sua
psicologia pictórica, que a interatividade com a modelo é, sempre, essencial no
resultado final.
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Moça, seu rostinho é meio redondo, você não prefere que eu alongue um pouco ? Acho que fica mais bonito!
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Alongue, meu filho, tenho um complexo danado dessa cara de lua cheia...
O
pintor , freneticamente, como um Pollock tupiniquim, esparramava a tinta na
cartolina enquanto , meticulosamente, ia indicando possíveis correções que podiam
melhorar a arte final.
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Essa cicatrizinha no queixo, não é bom tirar ?
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Tire, isso foi de um acidente que quero esquecer!
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Se eu aumentar um pouco o busto, você vai ficar mais sensual !
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Pois aumente !
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Seu narizinho é charmoso, mas é um pouco chato. Posso arrebitar ?
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Arrebite, vá lá ! Você presta atenção em tudo, né ?
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Seu cabelo tá curtinho, acho que ficava mais legal se a gente botasse um pouco
mais de volume, cobriria mais suas
orelhas que são um pouco cabanas...
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Pois avolume, eu quero é ficar melhor !
Já que não posso fazer plástica, ao
menos no retrato é possível, né ?
Em
poucos minutos , com movimentos cada vez mais rápidos e sincronizados, o menino
finalizou a obra. Assinou num cantinho : “Juvenal”
e, logo abaixo, datou: “2013”. A
menina observou, detalhadamente, o
quadro e gostou do que viu. Ali estava justamente como gostaria de ser, sem um
defeito sequer: linda, deslumbrante, poderosa, com um sorriso pendendo nos
lábios. Pagou, elogiou o trabalho do artista e saiu para casa levando sua
relíquia debaixo do braço. No outro dia,
mandou botar no quadro , com uma moldura antiga e dourada e um passe-partout bege.
Afixou na sala de jantar, logo
acima do divã azul.
Os
dias se passaram e a menina começou a encafifar. O retrato lá estava lindo e
deslumbrante, todo visitante admirava-se da beleza da obra, mas ,invariavelmente,
seguia-se a pergunta fatídica;
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Quem é ? Sua irmã? Uma prima ? Sua tia ?
De
tanto responder e explicar, cansou. Resolveu tirar o quadro da parede. Chegou à
conclusão que nós somos nós , não só por nossas qualidades, mas também por
nossos defeitos. Sem a alça, a mala poderia ser até mais bonita e simétrica, mas seria apenas uma caixa. As
pretensas deformações que nos tornam mais feios são , justamente, aquelas que
nos dão a identidade , que terminam nos fazendo diferentes e únicos.
Crato, 24/10/13
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