sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Ingrizias sebastianas



                      
J. Flávio Vieira

                        Mais de três anos sem cair um pinguinho sequer. Os poços do rio Paranaporã já tinham batido a piaba há mais de dez meses. Matozinho estava mais seca que língua de papagaio. De bicho de quatro pés só havia restado tamborete e de  avoador : pipa. Verde, na cidade, só se via em solenidade da prefeitura quando hasteavam o panteão nacional, mesmo assim era um verde velho desbotado mais puxado para cinza. Ah, havia, ainda, um outro raro remanescente  da antiga esperança : o  pano da sinuca do Bar do Godô. Quem chegasse de fora, ficaria encafifado como era possível sobreviver em meio àquela catástrofe. Não se lia, no entanto, nos olhos dos matozenses, nenhuma aflição descabida. Estavam acostumados ao ciclo natural das intempéries. Angustiavam-se quando viam os animais serem dizimamos, em série, pela fome e pela sede, mas lia-se ,no fundo das retinas,  um longínquo verde de esperança, cover daquele que um dia já havia engalonado as árvores e as vidas.
                                   Afonso Caititu morava no alto da Serra da Jurumenha nas cercanias de Matozinho, uns quatro a cinco quilômetros mais perto do céu. Nos últimos dias, havia procedido ao inventário final pós hecatombe. O que restava ainda para se desfazer e transformar em víveres ? Deu , então, com um velho Rádio SEMP, ainda alimentado a válvulas. Lembrou, então, que naqueles dias terríveis se celebrava, por ali, a festa do santo da capelinha : São Sebastião . Havia um vuco-vuco danado de gente indo e vindo para as novenas. Do alto de seus conhecimentos de Marketing de pé-de-serra, teve uma idéia genial. Aproveitaria a festa religiosa e promoveria um bingo do rádio, dava para arrecadar uns reais e transformá-los em farinha e rapadura por mais alguns dias, até que outro santo , Pedro, resolvesse colaborar.  
                                   A casa de Caititu ficava na saída do arruado. Ele , então, providenciou os preparativos. Varreu todo o terreiro, espalhou cadeiras disponíveis , posicionou o oratório, do lado de fora, com a clássica imagem de São Sebastião amarrado e trespassado de flechas ; contratou alguns meninos para fazerem a propaganda de  boca em boca e melhorou a iluminação com algumas lamparinas subsidiárias, movidas a querozene jacaré. De noitinha, postou-se defronte, com o rádio colocado numa mesinha, em local bem visível, as cartelas, a cumbuca e pedras em ponto de bala para o início do jogo.
                                   Afonso havia planejado tudo , detalhadamente. Escapou-lhe, no entanto, um fato importante. Um vizinho --  Francalino  Bemtevi – tivera uma idéia parecida e pertinho dali promoveu um Forró numa latada improvisada, com o grande Sanfoneiro da região : Cotozinho dos Oito Baixos. Eram eventos de sobra para um arruado tão pequenino, mesmo envenenado com o turismo religioso. Caititu postou-se em frente à casa, esperando, pacientemente, a clientela. Alguns meninos e curiosos ficaram pelas beiradas esperando o desenrolar das coisas. Aos poucos começou a chegar a freguesia, mas passava direto para o Forró. Entre as cartas e o rela-bucho preferiram o esfrega coxa. O tempo foi passando e, pouco a pouco, iam se dissolvendo as esperanças do nosso promoter. De início, Afonso ainda tentou se convencer que as coisas mudariam, mas , por volta de nove horas, caiu-lhe a ficha e o orelhão todo na cabeça. Afobado, desistiu e começou a colocar as coisas para dentro de casa, numa penosa desprodução. Enquanto ia e vinha, percebeu, entre os  curiosos  que por ali ainda permaneceiam curruchiado. Estavam, cuidadosamente, mangando dele. Numa das viagens , no leva-leva de coisas, trouxe, consigo, a velha espingarda soca-soca. Firmou-a no chão, observou a platéia meio desconfiada e ameaçou:
                        --- Tô botando as coisas tudo pra dentro. Mas tô avisando! O primeiro filho da puta que armar um risinho de canto de boca , zonando comigo, eu meto bala. Querem ver ?
                        Ninguém queria, ao menos ali, defronte ao cano da soca-soca. Foram saindo rápido. Caititu, no entanto, ficou ainda mais fulo da vida, quando ao longe, ouviu as gargalhadas que se soltavam já fora da alça da mira. Quando pegou por fim a imagem de São Sebastião, sobrou a raiva para  o santo guerreiro:
                        --- Vai timbora pra dentro de casa! Num fica olhando pra mim , não ! Devia ter vergonha : com esses olhos pidão, revirados pra riba, como quem procura rola voando!  Pezim levantado, munheca e rejeito moles, todo flechado... Tome jeito de homem! Tu é loiça, é ? Num zone , não ! Tu nem pode correr todo ingriziado  de imbiriba pra todo lado! Num venha não, seu fresco  !Te lasco chumbo no rabo!
15/11/13

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