sábado, 28 de dezembro de 2013

FEIRA LIVRE - José do Vale Pinheiro Feitosa

O Rio de Janeiro é uma narrativa esticada. Convivem atos e fatos coloniais, imperiais e republicanos. Da velha, nova e atual República. E não falo de molduras como o casario e ruas antigas. Falo do metabolismo cotidiano da cidade.

Por exemplo, as Feiras Livres. Nos bairros, na véspera, os carros estacionados em certas ruas devem procurar novo repouso. Na madrugada começa a algazarra da montagem de barracas, caminhões estacionando, caixas de hortifrútis com baques se empilhando nas calçadas.

Carros não passam nas ruas, não chegam e nem saem das garagens. A rua é da feira. Os moradores delas são parte da dinâmica. Suas calçadas, seu trânsito a pé, seu silêncio e sua portaria fazem parte da apropriação coletiva da feira. De um coletivo a serviço da atividade mercantil privada e vice-versa.

O esticado Carioca não é um painel de tempos. É a maneira como o hoje acontece. Uma fusão de contraditórios, misturando aparências com interioridades distintas. Ao mesmo tempo um tipo estranho numa mentalidade conservadora. No mesmo corpo a vanguarda e o atraso. E usar o que deseja sem buscar a coerência. Viver o nicho zoando pelos habitats estranhos.

Com o carrinho de feira pela calçada, na rua Jardim Botânico, dou de cara com uma jovem gorda estampando uma camisa com a logomarca da revista Vogue. A revista fashion. Mas quem traduz de fato aqueles dizeres em inglês das t-shirt? E um pintor de paredes com uma camisa de uma campanha eleitoral de dez anos passados.

Nos botequins da redondeza, aqueles que ainda restam, os bebedores contumazes ausentam-se da monotonia dos quitinetes com uma garrafa de cerveja de volume incerto, mas um copo espumando já pela metade. E nunca ficam cheios.

E na barraca de pastel, uma juntada de fregueses pedem, esperam, conversam enquanto o motor de 4 HP espreme o bagaço que esvaziou-se numa córrego de caldo de cana. Quem é mais importante? O Caldo de Cana? O pastel? A espera? Ou a conversa?

Os caminhões do peixe, do frango, do porco e até do carneiro. Linguiças. Ovos. Sangue para o molho pardo. Miúdos para o banho de vida insalubre e a retirada da pele das peças que dizem saudável. Dizem, é assim que a regra se interpõe.  

E uma rua plena com as duas margens de verduras, legumes e frutas desde a típicas dos finais de ano como a Lichia e as Cerejas até a velha banana do cotidiano. Barracas de temperos. Dos queijos, coalho, minas canastra, manteiga, parmesão e outros mais que somam-se à natureza de cada comerciante.

Para os sem tempo e preguiçosos, sacos de macaxeira descascada e em pedaços, sacos com mixes de legumes cortados ou de apenas um, além de outros ralados de modo a superar a lavagem daquele processador de legumes que foi uma maravilha na compra, mas hoje é estorvo no armário da cozinha.
E os comerciantes precisam alertar para o seu produto. Eles gritam, fazem piadas, têm seus refrãos. O marketing mais avançado contempla deste a rasgada satisfação com a venda ao repetir inúmeras vezes a palavra maravilha, maravilha, maravilha ou mentir sobre a qualidade do seu produto sem esquecer da piada que o denigre. Por exemplo, o senhor quer um mamão maduro, de vez ou um mamão podre.

E é fatal. Você se torna freguês de algumas barracas. A do Grandão por exemplo. Uma lábia de fazer inveja ao um padre ou a um pastor da liturgia da prosperidade. O melão é ótimo, só ele o tem, vem de Itaiçaba no Ceará. A manga dele não vem de São Paulo mas de um lugar outro onde é mais doce. Na verdade o bom sabor nos coloca no conhecimento da excelência daqueles lugares sem que nunca se tenha qualquer base que a sustente. A não ser a boa capacidade de escolha do Grandão na Ceasa.

E como um cidadão do século XIX, vou de volta para o meu canto, puxando um carrinho de compras cheio dos produtos da era da biotecnologia. A feira do Rio de Janeiro.


Nenhum comentário:

Postar um comentário