O Rio de Janeiro é uma narrativa esticada. Convivem atos e
fatos coloniais, imperiais e republicanos. Da velha, nova e atual República. E
não falo de molduras como o casario e ruas antigas. Falo do metabolismo
cotidiano da cidade.
Por exemplo, as Feiras Livres. Nos bairros, na véspera, os
carros estacionados em certas ruas devem procurar novo repouso. Na madrugada
começa a algazarra da montagem de barracas, caminhões estacionando, caixas de hortifrútis
com baques se empilhando nas calçadas.
Carros não passam nas ruas, não chegam e nem saem das
garagens. A rua é da feira. Os moradores delas são parte da dinâmica. Suas
calçadas, seu trânsito a pé, seu silêncio e sua portaria fazem parte da
apropriação coletiva da feira. De um coletivo a serviço da atividade mercantil
privada e vice-versa.
O esticado Carioca não é um painel de tempos. É a maneira
como o hoje acontece. Uma fusão de contraditórios, misturando aparências com
interioridades distintas. Ao mesmo tempo um tipo estranho numa mentalidade
conservadora. No mesmo corpo a vanguarda e o atraso. E usar o que deseja sem
buscar a coerência. Viver o nicho zoando pelos habitats estranhos.
Com o carrinho de feira pela calçada, na rua Jardim
Botânico, dou de cara com uma jovem gorda estampando uma camisa com a logomarca
da revista Vogue. A revista fashion. Mas quem traduz de fato aqueles dizeres em
inglês das t-shirt? E um pintor de paredes com uma camisa de uma campanha
eleitoral de dez anos passados.
Nos botequins da redondeza, aqueles que ainda restam, os
bebedores contumazes ausentam-se da monotonia dos quitinetes com uma garrafa de
cerveja de volume incerto, mas um copo espumando já pela metade. E nunca ficam
cheios.
E na barraca de pastel, uma juntada de fregueses pedem,
esperam, conversam enquanto o motor de 4 HP espreme o bagaço que esvaziou-se
numa córrego de caldo de cana. Quem é mais importante? O Caldo de Cana? O
pastel? A espera? Ou a conversa?
Os caminhões do peixe, do frango, do porco e até do
carneiro. Linguiças. Ovos. Sangue para o molho pardo. Miúdos para o banho de
vida insalubre e a retirada da pele das peças que dizem saudável. Dizem, é
assim que a regra se interpõe.
E uma rua plena com as duas margens de verduras, legumes e
frutas desde a típicas dos finais de ano como a Lichia e as Cerejas até a velha
banana do cotidiano. Barracas de temperos. Dos queijos, coalho, minas canastra,
manteiga, parmesão e outros mais que somam-se à natureza de cada comerciante.
Para os sem tempo e preguiçosos, sacos de macaxeira descascada
e em pedaços, sacos com mixes de legumes cortados ou de apenas um, além de
outros ralados de modo a superar a lavagem daquele processador de legumes que
foi uma maravilha na compra, mas hoje é estorvo no armário da cozinha.
E os comerciantes precisam alertar para o seu produto. Eles
gritam, fazem piadas, têm seus refrãos. O marketing mais avançado contempla
deste a rasgada satisfação com a venda ao repetir inúmeras vezes a palavra
maravilha, maravilha, maravilha ou mentir sobre a qualidade do seu produto sem
esquecer da piada que o denigre. Por exemplo, o senhor quer um mamão maduro, de
vez ou um mamão podre.
E é fatal. Você se torna freguês de algumas barracas. A do
Grandão por exemplo. Uma lábia de fazer inveja ao um padre ou a um pastor da
liturgia da prosperidade. O melão é ótimo, só ele o tem, vem de Itaiçaba no
Ceará. A manga dele não vem de São Paulo mas de um lugar outro onde é mais
doce. Na verdade o bom sabor nos coloca no conhecimento da excelência daqueles
lugares sem que nunca se tenha qualquer base que a sustente. A não ser a boa
capacidade de escolha do Grandão na Ceasa.
E como um cidadão do século XIX, vou de volta para o meu
canto, puxando um carrinho de compras cheio dos produtos da era da biotecnologia.
A feira do Rio de Janeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário