quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Natais




J. Flávio Vieira

                               A casa  , meio enterrada na depressão do terreno da fazenda, com sua  capela em vis à vis e seu pé de fícus  frondoso,   acolhendo a calçada alta e os longos bancos  de madeira, carregava um certo ar de magia e mistério.  Tingia os olhos deslumbrados do menino com tintas de acolhimento e medo. Durante o dia , o casarão quase nem sequer se delineava ante a imensidão do quintal, as delícias do pomar, a líquida lâmina da lagoa logo abaixo. À noite, no entanto, avolumava-se a casa, agora sem concorrência, embebida nas suas majestáticas sombras , só penetradas , aqui e ali, pelo fraco foco , em pino, dos candeeiros a querosene. As paredes  dir-se-iam mata-borrões prenhes de passado, de fantasmas, de sonhos , desejos e  (des)ilusões alimentados por muitas e muitas gerações.
                         Na salinha da frente , que se abria logo após à porta principal , a grande mesa com seus tamboretes parecia acolher anfitriões novos e pretéritos. A cozinha ,de um lado, com seu enorme fogão de lenha, com o teto negro de pucumãs , olhava desconfiada para o sótão, no alto, que avaro guardava o milho, o arroz e o feijão em palha,  da última safra. Do outro lado,  a casa se estendia num largo corredor que  se abria para vários quartos, como um rio que desaguasse em seus afluentes. O primeiro, à direita, era o do avô, com uma pequena cama de casal , um baú de pregaria e uma janelinha que se abria para a vista privilegiada  da calçada frontal , do fícus e da capela.Na parede , uma velha espada da Guarda Nacional.  O outro era a do tio padre que ali não morava,  mas que se guardava com desvelo quase arqueológico, intocável, esperando as cada vez mais raras visitas. Defronte , uma sala enorme, com uma infinidade de armadores  , postos frente a frente ,nas duas mais largas paredes, prontos a suportarem o peso de incontáveis redes. A cozinha e a sala maior possuíam portas que as ligavam ao vasto quintal da fazenda.                               Nas férias , a algazarra dos netos, como uma praga de gafanhotos,  tomava  conta  daquele vasto universo, para o desespero dos pássaros, das fruteiras, dos fantasmas, do avô e da avó. A gurizada vinha da cidade, de casas apertadas, onde as ruas já tinham sido engolidas pelos carros, sujeitos ao freio de mão dos pais e professores. Na fazenda eram como  graúnas sem as tariscas da gaiola.
                        Durante o dia, os meninos se espalhavam nos vastos horizontes da fazenda: o sítio, a lagoa, a caça, a pesca.  À noite, aquietavam-se ante o cansaço e o poder hipnotizador das sombras. Talvez, por isso mesmo, detentores dos mistérios da ressurreição, o Natal nunca lhes pareceu uma data especial. Carregavam consigo já a magia do renascer . Ademais, o Papai Noel  sempre se mostrara uma figura urbana e que não gostava das pequenas chaminés impregnadas de fuligem e pucumãs. Os meninos, por isso mesmo, nunca precisaram daquele velho distante e preconceituoso, aprenderam a se virar sozinhos, teciam seus próprios brinquedos : o pião , o triângulo, a peteca, a bola de meia, o carrinho de rolimã . Não bastasse aquela existência colorida que já era uma dádiva da natureza, se autopresenteavam.
                        Naquele ano, no entanto,  aquela regra imutável foi quebrada. O menino , na inocência dos seus seis anos, acordou, no Natal, com um presente colocado abaixo da rede em que dormira no grande corredor da casa de fazenda. Uma garrafinha de uma bebida sofisticada e nobre : um Guaraná Champanhe. Sobrenadava a garrafa num mar de urina : o menino ainda tinha aquela mania feia de urinar na cama. Rápido o guri lavou-a com a água do pote e ,com ajuda do avô, abriu-a. Degustou o refrigerante, em temperatura natural , como um sommelier que apreciasse um Bordeaux de ótima safra. 
                        Desde aquele dia que o meninozinho procura  o inefável gosto daquele guaraná nos outros muitos sabores que a vida lhe tem ofertado. Sem sucesso. Talvez porque as noites tenham pouco a pouco ficado mais longas e os dias mais curtos;  as sombras  agora já não flutuam , mas se balançam nas redes; os Natais vão tomando nuances de sexta-feira santa .  E o menino, ao contemplar-se no espelho, percebe que lhe cresceu, inexplicavelmente, uma grisalha barba como a do Papai Noel e tem ficado cada vez mais ranzinza e parecido com o avô.
Crato, 19/12/13

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