Há duas fases na existência em que o tempo nos brinda com a licença poética do despojamento. Na
juventude nem precisamos nos preocupar com as regras sociais, com os ditames
opressivos da moda, com a ditadura da etiqueta.
A criança faz xixi na rua e, banhada de inocência, faz brilhar os olhos
de quem passa. O adolescente aparece chique e fúlgido vestindo apenas o
short jeans, a camisa de malha meio
desbotada e o tênis. É que o desabrochar da rosa juvenil traz consigo seus próprios encantos. A orquídea
que brota no deserto ou em meio aos seixos
aparece mágica e encantadora aos nossos olhos, mais hipnótica que a que
brolha no jardim, talvez pela antítese
ao se contrapor à sequidão agreste da paisagem. É assim que
se fazem engraçados os arrufos infantis, a pueril percepção enviesada do mundo
e até mesmo a contestação aparentemente irritante dos jovens, quando se deparam
com os caminhos previamente traçados pelas gerações que lhes antecederam. Talvez,
por isso tudo, lhes seja dado esse salvo conduto. O dourado da vida já lhes
banha de alegria, de esperança e felicidade, qualquer acessório , qualquer
adereço transforma-se, imediatamente, em supérfluo.
A idade madura , a outra extremidade da corda,
nos vai proporcionando, pouco a pouco, também essa imunidade. Aos poucos,
também, nos vamos livrando das amarras da etiqueta social. O paletó já pode
voltar ao guarda roupas; o cromo alemão
ganha sua merecida aposentadoria no
sapateiro ; o linguajar técnico deve ser substituído , dia após dia,
pelo doce dialeto da rua e pelo palavrão. Itens essenciais voltam ao nosso
convívio diário : o boné que põe um teto na pouca telha; a chinela que alforria
os pés das galés do sapato; a bermuda que expõe sem remorsos as varizes e seus
afluentes e a brancura das canelas órfãs
de sol. O confortável pijama de bolinha é indumentária que não precisa ter manias de vampiro : já pode
resistir aos raios do sol. Já não nos interessa os rígidos ditames da moda: a
bermuda listrada pode muito bem combinar com o tênis e a meia social, hirta subindo canela acima. As auroras e os crepúsculos retornam,
finalmente, fazendo parte da nossa
paisagem habitual. A lua volta a existir e, por incrível que possa parecer, tem
fases , como toda bela mulher que se preza. O carro perde sua importância e só
então se percebe o quanto do belo panorama ao nosso redor ele nos roubou com sua velocidade e seu
azáfama. Fechando um ciclo,
percebendo-se a flor que se vai murchando e tendendo a despetalar-se, descobrimos que a vida pode ser mais simples,
mais escorreita e que muito pouco das inomináveis amarras que a sociedade nos
impingiu tem sentido e valeu a pena.
Nossa dourada juventude foi depenada pelo liquidificador da vida e,
agora, desnudos , enxergamos nossa nudez
já sem a vergonha do pecado original.
Podemos, assim,
empreender a viagem de volta: o xixi
embeberá novamente as fraldas; o anda-já
substituirá o automóvel; o leite
aparecerá de novo como alimento essencial e os amigos e familiares mais
próximos se tornarão estranhos e distantes como já foram um dia. A palavra,
pouco a pouco, sumirá da nossa língua trôpega e, finalmente, alcançaremos o
ápice do despojamento. Um dia , por fim, contradizendo toda experiência que nos
trouxe a maturidade, nos enfiarão o paletó em desuso e o cromo alemão já
deportado, a mesma fantasia do baile passado, do ensaio para o nada e , hoje, novamente , adereços mais que propícios para o
carnaval dos vermes e a unção do pó.
J. Flávio Vieira
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