sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Pijama de Bolinha



Há duas fases na existência em que o tempo  nos brinda com  a licença poética do despojamento. Na juventude nem precisamos nos preocupar com as regras sociais, com os ditames opressivos da moda, com a ditadura da etiqueta.  A criança faz xixi na rua e, banhada de inocência, faz brilhar os olhos de quem passa. O adolescente aparece chique e fúlgido vestindo apenas o short  jeans, a camisa de malha meio desbotada e o tênis. É que o desabrochar da rosa juvenil  traz consigo seus próprios encantos. A orquídea que brota no deserto ou em meio aos seixos  aparece mágica e encantadora aos nossos olhos, mais hipnótica que a que brolha no jardim, talvez pela  antítese ao se  contrapor  à sequidão agreste da paisagem. É assim que se fazem engraçados os arrufos infantis, a pueril percepção enviesada do mundo e até mesmo a contestação aparentemente irritante dos jovens, quando se deparam com os caminhos previamente traçados pelas gerações que lhes antecederam. Talvez, por isso tudo, lhes seja dado esse salvo conduto. O dourado da vida já lhes banha de alegria, de esperança e felicidade, qualquer acessório , qualquer adereço transforma-se, imediatamente, em supérfluo.
                        A  idade madura , a outra extremidade da corda, nos vai proporcionando, pouco a pouco, também essa imunidade. Aos poucos, também, nos vamos livrando das amarras da etiqueta social. O paletó já pode voltar ao guarda roupas; o  cromo alemão ganha sua merecida aposentadoria no  sapateiro ; o linguajar técnico deve ser substituído , dia após dia, pelo doce dialeto da rua e pelo palavrão. Itens essenciais voltam ao nosso convívio diário : o boné que põe um teto na pouca telha; a chinela que alforria os pés das galés do sapato; a bermuda que expõe sem remorsos as varizes e seus afluentes  e a brancura das canelas órfãs de sol. O confortável pijama de bolinha é indumentária que  não precisa ter manias de vampiro : já pode resistir aos raios do sol. Já não nos interessa os rígidos ditames da moda: a bermuda listrada pode muito bem combinar com o tênis e a meia social,  hirta subindo canela acima.  As auroras e os crepúsculos retornam, finalmente,  fazendo parte da nossa paisagem habitual. A lua volta a existir e, por incrível que possa parecer, tem fases , como toda bela mulher que se preza. O carro perde sua importância e só então se percebe o quanto do belo panorama ao nosso redor  ele nos roubou com sua velocidade e seu azáfama.  Fechando um ciclo, percebendo-se a flor que se vai murchando e tendendo a despetalar-se,  descobrimos que a vida pode ser mais simples, mais escorreita e que muito pouco das inomináveis amarras que a sociedade nos impingiu tem sentido e valeu a pena.  Nossa dourada juventude foi depenada pelo liquidificador da vida e, agora,  desnudos , enxergamos nossa nudez já sem a vergonha do pecado original.
                        Podemos, assim, empreender a viagem de volta:  o xixi embeberá novamente as fraldas;  o anda-já substituirá o automóvel;  o leite aparecerá de novo como alimento essencial e os amigos e familiares mais próximos se tornarão estranhos e distantes como já foram um dia. A palavra, pouco a pouco, sumirá da nossa língua trôpega e, finalmente, alcançaremos o ápice do despojamento. Um dia , por fim, contradizendo toda experiência que nos trouxe a maturidade, nos enfiarão o paletó em desuso e o cromo alemão já deportado, a mesma fantasia do baile passado, do ensaio para o nada e , hoje,  novamente , adereços mais que propícios para o carnaval dos vermes e a unção do pó. 

J. Flávio Vieira

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