quinta-feira, 24 de abril de 2014

Pompeia




J. FLÁVIO VIEIRA

                                               A mulher ralhava, os filhos implicavam.  Aquele hábito diário do velho Vulpino Seabra incomodava toda a família. Lembravam que os tempos agora eram outros, que a violência andava à solta, que com  internet e afins já não se justificava sair flauteando por aí, mal o sol se esgueirava por trás da  serra, ainda espreguiçante. Nem precisava: tinha um Sacolão logo na esquina , e o vendedor de porta em porta com sua  carrocinha. Sentiam-se os familiares   diminuídos, vendo um membro importante da família teimando com um trabalho de vassalo. Principalmente porque os tempos das vacas magras já haviam passado, os velhos tinham se aposentado, os filhos estavam bem colocados: queriam mais era travestir-se de um ar nobiliárquico e apagar de vez , da memória de todos, aqueles passado de liseira. Vulpino, no entanto, fazia ouvidos de mercador. Preparava, com desvelo de ourives, o velho cigarro de palha que dependurava aceso em um dos cantos da boca, pegava a cesta grande, raceada com balaio,  e , num nem “escuto o barulho da mutuca”, partia para o Mercado, antes que os raios sanguíneos escorressem  como uma hemorragia na linha do horizonte.  Desde que se aposentara sempre fora assim. Cedinho trazia para casa frutas e verduras frescas , ainda com o cheiro de terra e de orvalho.
                                               Vulpino trabalhara na agricultura e o convívio com o multicolorido das frutas e verduras , o cheiro doce das primícias terrestres lhe traziam uma profunda paz à alma. Além de tudo, como todo velho, tinha um acordar madrugante e exasperava-se com a preguiça dos demais familiares. No mercado encontrava com os demais companheiros de geração e iam, pouco a pouco, entre um corredor e outro, colocando as fofocas em dia. E havia, ainda, inúmeras outras qualidades. O mercado fazia-se um lugar propício para as contravenções culinárias. Ali tomava o caldo de mocotó logo pela manhã, espantava o anjo da guarda com a primeira bicada de zinebra , com o tira-gosto de buchada ou sarapatel.  Naquele espaço inda não tinham sido descobertos o sal e  o colesterol . A rapadura e doce de leite nunca fizeram mal  ao diabetes. Ademais,  qualquer indisposiçãozinha transitória tinha, logo defronte, a barraquinha das meizinhas : marcela, ipepaconha, boldo, capim santo, hortelã...  Àquelas horas, todos os pecadilhos eram permitidos e nem adiantava os implicadores de sempre virem especular : nunca havia testemunhas de possíveis delitos cometidos. Valia a Lei da Omertà.
                                               Havia ainda uma outra grande atração no Mercado de Frutas. Sempre era possível ir se enxerindo para uma ou outra vendedora. Puxava-se conversa daqui, encomprida uma outra ali e, muitas e muitas vezes, reacendiam-se chamas que se imaginavam totalmente extintas, sufocadas em meio às cinzas dos anos. Vulcões inativos , remexidas placas tectônicas enferrujadas, voltavam a cuspir lava como nos tempos de Pompéia e Herculano.
                                               Por tudo isso, Vulpino não abria mão da viagem matutina. Percebia que vinha um pouco mais de verduras e frutas na cestinha, quando retornava do mercado. Trazia o mistério do frescor das fontes e da erupção súbita dos vesúvios extintos.
Crato, 24/04/14

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