J. FLÁVIO VIEIRA
A
mulher ralhava, os filhos implicavam. Aquele
hábito diário do velho Vulpino Seabra incomodava toda a família. Lembravam que
os tempos agora eram outros, que a violência andava à solta, que com internet e afins já não se justificava sair
flauteando por aí, mal o sol se esgueirava por trás da serra, ainda espreguiçante. Nem precisava:
tinha um Sacolão logo na esquina , e o vendedor de porta em porta com sua carrocinha. Sentiam-se os familiares diminuídos, vendo um membro importante da
família teimando com um trabalho de vassalo. Principalmente porque os tempos
das vacas magras já haviam passado, os velhos tinham se aposentado, os filhos
estavam bem colocados: queriam mais era travestir-se de um ar nobiliárquico e
apagar de vez , da memória de todos, aqueles passado de liseira. Vulpino, no entanto,
fazia ouvidos de mercador. Preparava, com desvelo de ourives, o velho cigarro
de palha que dependurava aceso em um dos cantos da boca, pegava a cesta grande,
raceada com balaio, e , num nem “escuto
o barulho da mutuca”, partia para o Mercado, antes que os raios sanguíneos escorressem
como uma hemorragia na linha do
horizonte. Desde que se aposentara
sempre fora assim. Cedinho trazia para casa frutas e verduras frescas , ainda
com o cheiro de terra e de orvalho.
Vulpino
trabalhara na agricultura e o convívio com o multicolorido das frutas e
verduras , o cheiro doce das primícias terrestres lhe traziam uma profunda paz
à alma. Além de tudo, como todo velho, tinha um acordar madrugante e exasperava-se
com a preguiça dos demais familiares. No mercado encontrava com os demais
companheiros de geração e iam, pouco a pouco, entre um corredor e outro,
colocando as fofocas em dia. E havia, ainda, inúmeras outras qualidades. O mercado
fazia-se um lugar propício para as contravenções culinárias. Ali tomava o caldo
de mocotó logo pela manhã, espantava o anjo da guarda com a primeira bicada de
zinebra , com o tira-gosto de buchada ou sarapatel. Naquele espaço inda não tinham sido descobertos
o sal e o colesterol . A rapadura e doce
de leite nunca fizeram mal ao diabetes. Ademais,
qualquer indisposiçãozinha transitória
tinha, logo defronte, a barraquinha das meizinhas : marcela, ipepaconha, boldo,
capim santo, hortelã... Àquelas horas,
todos os pecadilhos eram permitidos e nem adiantava os implicadores de sempre
virem especular : nunca havia testemunhas de possíveis delitos cometidos. Valia
a Lei da Omertà.
Havia
ainda uma outra grande atração no Mercado de Frutas. Sempre era possível ir se
enxerindo para uma ou outra vendedora. Puxava-se conversa daqui, encomprida uma
outra ali e, muitas e muitas vezes, reacendiam-se chamas que se imaginavam
totalmente extintas, sufocadas em meio às cinzas dos anos. Vulcões inativos ,
remexidas placas tectônicas enferrujadas, voltavam a cuspir lava como nos
tempos de Pompéia e Herculano.
Por
tudo isso, Vulpino não abria mão da viagem matutina. Percebia que vinha um
pouco mais de verduras e frutas na cestinha, quando retornava do mercado.
Trazia o mistério do frescor das fontes e da erupção súbita dos vesúvios extintos.
Crato, 24/04/14
Nenhum comentário:
Postar um comentário