sexta-feira, 9 de maio de 2014

Porto



                                                                                                                          J. Flávio Vieira
 Suetônio Carabina jamais imaginou que , um dia, seu caminho cruzasse com o do machadiano Simão Bacamarte. Havia lá algumas similitudes que transpunham os sobrenomes francamente bélicos: os dois eram médicos e terminaram, nas suas histórias, passando por algumas sinucas de bico. Suetônio, no entanto, abraçara a cirurgia e Simão, o personagem principal de “O Alienista”, fizera-se psiquiatra e acabara por virar de ponta cabeça a pequena Itaguaí.  Suetônio , mais jovem, instalou-se na beira-mar , sob a filosofia simplória ( tão preponderante entre os seus pares) de que quem faz carreira no mato é preá e calango.
                               Carabina seguiu o curso esperado na sua profissão. Vida de louco, saltando de plantão em plantão, buscando salvar vidas praticamente com as unhas e os dentes, em meio a serviços totalmente destroçados. Casou , teve dois filhos, financiou um apartamento e dois carros importados e , beirando os cinqüenta, aguardava apenas o enfarte. Construiu ainda  uma casa enorme na praia, onde buscava compensar o espaço que lhe faltava no apartamento e na vida. Final de semana, invariavelmente, partia para lá com a mulher e os filhos que, já fisgados pela mordida de cachorro doido da adolescência, iam trombudos e sob protesto. Na sexta, à tarde, a esposa partia com os meninos e Suetônio  seguia apenas do dia seguinte. Há mais de quinze anos dava plantão  na emergência  de um hospital de periferia, exatamente nas sextas feiras.
                               Anos e mais anos naquela rotina, um dia, não mais que de repente, Suetônio esbarrou com uma vizinha no elevador. Em casa, ele e a mulher já haviam se tornado quase que irmãos. Afinal , comentava ele com os colegas, um sujeito que come a mãe dos próprios filhos deve ser um tarado sexual. Conversa vai , conversa vem, terminaram por trocar telefones e passaram a namorar por baixo de sete capas. Altina era uma morenaça de meia idade, recém separada e que ainda carregava consigo  algum travo do veneno que se foi destilando no relacionamento passado.  Passou, assim, a utilizar, facilmente,  o antídoto carabinesco como droga de eleição. Estabeleceu-se, claro, um grande problema lojístico. Ele e Altina moravam no mesmo prédio, qualquer deslize: a vaca escorregaria para o brejo.
                               De início combinavam , por telefone, encontros em motéis distantes. Aos poucos, no entanto, Suetônio percebeu que a sexta feira à noite transformara-se num achado. A esposa e os filhos já estavam na praia. Ele apenas entregava o plantão a um colega a partir das dez da noite. Voltava para casa, ligava para Altina que, sorrateiramente, subia para seu apartamento e, aí, a lua de mel  estava garantida. No dia seguinte, cedinho, a noiva se esgueirava escada abaixo e ele partia para praia, cansado, estafado de um plantão bem mais caloroso e lúdico.
                               A farra permaneceu imutável por mais de um ano. Um dia, no entanto, como podia se prever, o cão atentou. Não se sabe bem se a hecatombe teria acontecido por mero acaso ou se a esposa de Carabina desconfiou de alguma coisa : algum telefonema, alguma peça íntima extraviada. O certo é que, sob o pretexto de ter esquecido a chave da casa da praia, de madrugadinha,  a patroa retornou numa fatídica sexta feira. Abriu a porta do apartamento com a outra chave que carregava no chaveiro do carro. Quando empurrou a porta do quarto de casal, quase cai estupefata com a cena que presenciou. Suetônio e Altina, em pelo, dormindo o sono dos serafins, na cama do casal, após a  estafante batalha de Eros.
                                A esposa armou o maior barraco:
                               ---  Na minha cama, seus sem vergonhas ! Me respeitem ! Peraí queu voltou já e vai ser caco de ovo e de priquito pra tudo quanto é lado !
                               A mulher, como um miúra enfurecido, partiu para a cozinha em busca do rolo de pastel. Altina, juntou os trapos, como pode , vestiu-se à medida que descia as escadas, e se escafedeu, antes que a fera voltasse para cumprir a ameaça e chegassem as testemunhas oculares para flagrar o mico. Quando a esposa retornou, ainda aos berros, encontrou um Carabina estranho. Olhos fitos na parede, face  inexpressiva, sem balbuciar qualquer palavra. Nem sob a ameaça do rolo de pastel no toitiço,   Suetônio se aluiu.   Permaneceu imóvel por mais de meia hora, quando se levantou, abriu o guarda roupas, vestiu o smoking , pôs o cromo alemão nos pés e depois partiu para o banheiro  e entrou debaixo do chuveiro. Voltou, sem dizer palavra, plantou bananeira e ficou assistindo televisão de ponta cabeça. De início a esposa ainda enfurecida, imaginou que tudo fosse uma armação, mas ,depois do segundo dia, começou a se preocupar. Carabina permanecia silente, não se alimentava, parecia alheado. Foi aí que resolveu chamar um colega e compadre psiquiatra, o Dr. Loreto.
                               O alienista veio de pronto e encontrou um paciente totalmente desconectado do mundo. Pensou , de início, num surto agudo de esquizofrenia catatônica. Quando a esposa, no entanto, saiu do quarto, em plena consulta, para pegar alguns remédios que Carabina tomava eventualmente, súbito o paciente recompôs-se e sussurrou para o psiquiatra:
                               --- Loreto, bico calado! Me interne imediatamente, depois eu te conto tudo !
                               O alienista sacou que havia alguma coisa errada. Quando a esposa retornou ele disse-lhe que , a seu ver, parecia um surto psicótico e que se fazia imperioso um internamento em uma Clínica de Repouso.
                               -- É para prórpia segurança dele e da família !Avise aos familiares e amigos que se trata de uma estafa, para não queimar o filme do meu compadre !
                               Procedido ao internamento,  Loreto , por fim, ficou a par da enrascada em que  Carabina se metera. Manteve-o ali por mais uma semana e, depois, deu alta sob a severa orientação de que melhorara, mas apenas parcialmente e que nunca se poderia prever quando os surtos retornariam.
                               --- Ele não pode ter nenhum tipo de preocupação ! Todo cuidado é pouco! A saúde mental dele é um castelo de cartas !
                               Suetônio voltou ao trabalho. Não se tocou mais ao assunto melindroso das sinuosas e derrapantes curvas de Altina. Se Simão Bacamarte descobrira, um dia, que a loucura é um continente no mar da razão, Carabina acabava de confirmar que, em casos específicos, pode ser também um porto.

Crato,  09/05/14

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