sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A ameixa no pudim de leite


                                                                                                          J. Flávio Vieira

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso.
 Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Clarice Lispector

                                                               Não tem bom sem defeito,  já reza a doce filosofia popular. Como caju, qualquer vivente deste mundão sem fronteiras, tem sempre um certo travo. Fossem os homens todos puros e imaculados, tornar-se-iam, quem sabe, igualmente insípidos e insulsos. A impureza é que os faz diferentes e únicos, que põe algum tempero no caldo que, claro, dependendo da intensidade, pode torná-lo saboroso ou intragável. A grande arte da vida tem seus segredos nesta cuidadosa cocção das nossas qualidades e extravagâncias.  Carregar nossa jornada apenas com virtudes pode nos tornar santos, mas perfeitamente assépticos. Faz-se mister dependurar, pelas beiradas,  algumas imprecisões, algumas falhas e incorreções que terminarão funcionando como a ameixa no pudim de leite.
                                                               Emengardo Loyola sabia disso por mera intuição. Ao longo de toda vida buscou dosar , com balança de precisão, predicados e pecadilhos. Transparecia, com algum estardalhaço suas qualidades : trabalhador incansável, pai de família carinhoso, uma certa carolice de papa-hóstia. Já as imperfeições apareciam algumas maquiadas e outras guardadas em cofre forte e sem senha. Percebia-se que era um pouco pão-duro, meio rapa de sola. Comentavam, também, os amigos,  das suas escapadelas, passando por baixo das cercas de arame farpado do casamento. Havia, por outro lado, um mistério difícil de desvendar. Emengardo não era rico, mas levava uma vida bastante confortável. Tinha casa própria, carro do ano, os filhos estudavam em boas escolas, a mulher não trabalhava por opção e contavam-se inúmeros imóveis  de sua propriedade. Trabalhava no setor de contabilidade de uma fábrica de sapatos há muitos anos. Auferia salário razoável e ganhara a inteira confiança dos seus patrões pelos longos e profícuos serviços prestados à empresa. Nem férias conseguia gozar, pois sempre o arregimentavam para quebrar os galhos e fechar as contas. Sua boa situação financeira sempre se imputava ao seu afinco ao emprego e, também, à sua crônica sovinice. O dinheiro entrava em sua conta em cano de quatro polegadas e saía gota a gota como em alambique.
                                                               O que ninguém sabia é que havia mais razões para a situação financeira folgada do nosso Loyola. Manipulando as contas e as verbas da firma, ele , funcionário de plena confiança dos patrões, encontrou maneiras de fazer esvair-se  dinheiro por canos paralelos, para pagamentos de empresas de fachada e que terminavam  engordando sua própria poupança bancária. Tornara-se, assim, meio sócio fantasma do negócio, sem que ninguém soubesse da empreitada. Emengardo ia de vento em popa com seu barquinho. Mantinha suas virtudes bem à mostra e também seus vícios menores os expunha com algum velamento. Tornara-se uma figura querida na cidade e, antes de tudo, humana: dosara de forma harmônica santidade e  transgressão.
                                                O diabo é que , com o passar dos anos, começou a pesar, na cabeça judaico-cristã de Loyola, o seu maior e velado vício : o surrupiamento clandestino das verbas da fábrica de sapatos. E aquele peso se foi tornando insuportável, até mesmo porque ele não podia dividir com ninguém: nem amigos, nem familiares, nem mesmo com  seu conselheiro religioso( temia a cobrança retroativa do dízimo). Um dia, por fim, ele tomou a decisão drástica: Já basta! Vou viver do meu salário!
                                               Nunca ninguém compreendeu bem a derrocada de Emengardo a partir daquele dia. As coisas começaram a minguar, caiu o padrão de vida, os filhos acostumados com uma vida mais folgada tiveram dificuldade de se adaptar aos novos tempos de cabritos magros. A esposa torceu o nariz e terminou resolvendo se separar do marido, antes que todo o patrimônio adquirido por tantos anos, fosse todo pelo ralo. Com o rabo entre as pernas, como cachorro em noite de São João, Loyola começou a ficar recluso, a se afastar dos amigos e até da igreja. Sua tristeza invadiu inclusive o seu ambiente de trabalho e os patrões começaram a olhar para ele com ar meio atravessado. Resolveram, por fim, demiti-lo, temendo que sua derrocada financeira o levasse a solapar o patrimônio da fábrica, para cobrir o buraco nas próprias finanças.
                                               Um dia, por fim, a faxineira  encontrou um bilhetinho no criado mudo, junto ao copo de 1080  que pendia de uma mão inerte:
                                               “Eu , como qualquer  simples mortal, era  edifício construído com caibros e ripas de poucas  virtudes e linhas, colunas e pilastras de muitos defeitos. Um dia resolvi, inadvertidamente,  derrubar a viga mestra de imperfeições que sustentava toda estrutura do prédio .  Ruí!”


Crato, 22/08/14 

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