segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

CARTA DE NATAL - José do Vale Pinheiro Feitosa

Pronto! Pendurei a minha meia furada no cabide de minha consciência. Nela expôs uma carta à fonte do nascimento daquilo que eu sou.

Uma carta estranha. Como um lençol de retalhos. Costurados com uma linha fraca que se solta a cada solavanco das minhas necessidades. A carta para despedir tudo aquilo que forma o que sou. Tudo aquilo que, continuamente, molda meu modo de pensar, sentir e agir.

Este tudo é que a sociedade de consumo e o “moto perpetuo” do sistema que é dinâmico, contraditório e que assim nos faz a dominação política e ideológica. Este sonho de plástico. A liberdade descartável do capitalismo.

Amanhã quando acordar não quero mais figuras irreais, que vivem no mundo da fantasia, na Lapônia gelada da Disneylândia. Eu quero meu pai de carne e osso, humano como só ele pode. Detentor de princípios e dúvidas, certezas e regras, mistérios e luz solar, quero este ser que é vivo como eu, que tem medo e seguranças que se formam no dia-a-dia de cada ação.

Não quero mais beber os goles do outdoor desta bebida estranha, que promove azia, que não se bebe pelo gosto, mas pela vaga promessa que assim serei igual aos outros. Que assim aproveitarei mais a vida.

E a vida só precisa de um gole de água para matar a sede.

Não quero mais a propaganda que promete me libertar apenas para que seja igual aos outros que consomem a mesma mentira. Prefiro sair com estes amigos imperfeitos, igual a mim, que andam pelas ruas, curtem a luz plena, a penumbra e gostam de ouvir as coisas que cantam.

Hoje devolvo às mãos do mito gerador deste natal de mercadorias, onde não sei a minha posição se comprado ou comprador. Assim devolvo todas as fantasias brilhantes e excrescentes que ao meu corpo tentam confundir.

Devolvo o seu caldo ralo de felicidade, a sua incolor liberdade, esta meia peça de roupa chamada autoestima, esta igualdade tão sólida quanto um feixe de luz e esta exclusividade que mente para mim do amanhecer ao anoitecer e perdura nos meus sonhos.

Devolvo todos os objetos de desejo que tentas colar às minhas necessidades.

Amanhã a voz do pregoeiro já não mais ouvirei. Os meus símbolos e signos não estão a serviço de suas vendas e agora desprego de sua voz tudo aquilo que hoje me diferencia socialmente de alguém, segundo as palavras dele.

O que me diferencia é exatamente aquilo que me iguala. E o que me igual não pertence ao universo de suas palavras, não me venhas dizer que preciso ficar atualizado com a moda, com a novidade, com o upgrade, com qualquer coisa que não seja novidade porque extraída dos passos que dou na vida, do encontro e desencontro que tenho de acordar e discordar.  

Pegue seu carrão, com palavras inglesas no câmbio, no motor, nos freios e enfie nos louros da ambivalência de promessas nunca realizadas. E quando alguém apaixonado pela natureza, montar naquela máquina de lucros e seguir lanhando a superfície das terras interioranas, como se fizesse algo excepcional que não seja destruição de vida e distorção do amor à natureza.

Como lhe disse, eu sou. Se tenho é circunstancial. E mesmo o que tenho se extensão de mim não é mais do que extensão de todos: a praia, a cidade, a praça, os sertões, o açude, o pôr do sol, esta brisa agradável sob o tronco da frutificação de uma cheirosa safra de cajá. O perfume do cajá eu sou. Não tenho.

E sei da arapuca que é acumular, rodear-se de uma falsa abundância de coisas. Eu nunca esqueci do meu amigo Guajenito, lá no Morro do Escondidinho, no bairro do Rio Comprido. Ele juntando tudo que pegava abandonado e jogando sobre o teto de seu barraco que vergava ao peso de tanto acumulado.

E pois termino por dizer que esta “democracia do ter não sendo nada”, apenas objeto da máquina de produção e venda, não visto mais. E sei porque não visto mais.

A grande maioria reza a oração do consumo sem se dar conta que tudo é exaltação da mentira da abundância que não existe. Hoje mesmo, neste natal, milhões de brasileiros passarão fome. E passarão fome porque toda esta mitologia do consumo esconde o quanto tudo isso é um exercício perverso e infernal da exclusão social e econômica.

Toda esta ideologia do mito e da fantasia é a forma aceitável da exclusão. Até que a revolta se instale além da fantasia e desnude o povo.

O rei não precisa desnudar. Ele não liga mesmo para a sua nudez. Esta época até isso permitiu a ele.




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