J. FLÁVIO VIEIRA
Findo o período momino, o Governador
da Bahia, Rui Costa , debruçando-se sobre os crescentes índices de
violência no Carnaval, chegou a uma conclusão polêmica : a separação dos
foliões que pagam dos que não pagam, por cordas, nos trios elétricos, é o
principal motor das cenas de agressividade. “Quanto menos cordas, menos
violência teremos no Carnaval”, fechou o governador em entrevista.
Dias antes, um
dos maiores compositores brasileiros, Gilberto Gil, dono de um camarote
exclusivíssimo no Circuito Barra-Ondina, citou uma frase não menos polêmica, ao
ser perguntado sobre o esgotamento daquela modalidade de Carnaval baiano,
extremamente industrializado. Gil disse que sempre foi assim no Brasil : As
elites nos camarotes assistindo ao povo brincando e se divertindo na avenida. Para
ele, essa modalidade de festa à baiana só cresce por conta da tecnologia e dos
negócios. A tendência seria, neste oásis da classe rica que são os camarotes,
acontecerem festas específicas outras, enquanto na rua, rolaria o carnaval
propriamente dito. As duas frases me parecem perfeitas para uma reflexãozinha,
neste período quando sacudimos os confetes e serpentinas e deslanchamos o
início real de 2015.
O
Carnaval, desde seus primórdios, teve sua força no potencial anárquico que carregava
consigo. De repente, o mundo virava de ponta cabeça : homens se vestiam de
mulher; escravos esguichavam água nos amos; amores ganhavam a eternidade de quatro dias; maridos escapavam à sorrelfa a
despeito da vigilância das esposas. Charangas, blocos de sujos ganhavam a rua
e cada um se travestia , de repente, dos seus desejos
mais íntimos, banhados numa certa cortina de anonimato. A irreverência da
festança caiu no gosto dos brasileiros e o Carnaval foi tomando um vulto
inesperado, principalmente em alguns polos que se foram tornando mais
tradicionais : Rio de Janeiro, Salvador e Recife.
O Mercado, o deus dos dias atuais, rapidamente
percebeu que existia ali uma enorme possibilidade de lucro. Só que numa festa
tão anárquica era preciso colocar regras fixas para poder cobrar o ingresso. Aí
vieram os cordões de isolamento, os camarotes exclusivos, o desfile fechado dos
blocos na Sapucaí, a venda de fantasias e adereços, os bailes mominos em clubes. O Rio de Janeiro terminou por
acabar com seu invejável e vultoso carnaval de rua, resumiu-o a um mero
espetáculo de arquibancada. As Marchinhas picantes e bem humoradas de outrora
foram substituídas pela monotonia de Sambas-Enredos repetitivos e chatos. Só nos
últimos anos, o Rio vem tentando correr
atrás do prejuízo com “A Banda de Ipanema”, o “Monobloco” e outros tantos que
tais.
Salvador, que
começou com o sonho de Dodô-Armandinho-Osmar, industrializou seu Carnaval, com seus
trio-elétricos fechados por cordão de isolamento e os foliões todos com seus
abadás uniformizados e seus camarotes todos caríssimos. O povão ,se quiser
brincar, fica de “pipoca” do lado de fora, sujeito aos safanões e aos
descuidistas . Talvez muitos dos trombadinhas
contratados pelos mesmos blocos para forçar os pipoqueiros a comprarem
seu ingresso nos próximos carnavais. A Axé Music, monocórdica, depois de trinta
anos espatifando tímpanos, perdeu fôlego e percebe-se, claramente, que já não
traz o fervor e a alegria dos velhos tempos. O formato do Carnaval de Salvador parece
estar em pleno declínio.
Restou
Recife que mantém a tradição do Carnaval de Rua, com seu frevo que carrega uma
bagagem lúdica de mais de um século e sua dança esfuziante e malabarística. Não
há cordões de isolamento nos blocos, as fantasias são simples e perfeitamente
criativas e não existe apartheid. Todos estão juntos na avenida. Há 25 anos
acompanho o Carnaval de Olinda e Recife e conto nos dedos as brigas que
presenciei. O “Galo da Madrugada” que arrasta mais de um milhão de foliões de
todas as classes sociais dá , anualmente, um exemplo de como é possível juntar
tantos , mesmo sob o poder do álcool, alegres, irmanados e tolerantes.
A
citação de Rui Costa, assim, me parece perfeita. Vivemos em uma sociedade de
castas, apesar de propalarmos a beleza da nossa miscigenação. Os bacanas não
querem se misturar com o povaréu. Infelizmente, um dia esses conjuntos têm
alguma intersecção. Não dá para morrer de fome quieto no morro, vendo o vizinho logo abaixo comendo
caviar. O Cordão de Isolamento faz com que essas diferenças surjam claras e
translúcidas : dentro da corda os cidadãos, fora da corda, a corja.
A
frase de Gil, com todo respeito que tenho ao meu compositor brasileiro
preferido, me parece muito infeliz. Primeiramente, passa essa separação como
uma coisa natural. Os ricos nos camarotes e a pobreza na rua. E mais ,
transparece uma tendência de imutabilidade: sempre foi assim, meu povo, nunca
vai mudar! Por outro lado, Gil esquece que não foi bem isso que aconteceu no
Carnaval de Salvador. A Elite já não se conforma em ficar no camarote, ela
invadiu a avenida, impermeabilizando-se pelas cordas do blocos e não permite mais ao povão brincar: “Xô,
carniça ! O Carnaval, agora, é privilégio dos bacanas!” Gil que um dia já morou na Cidade Baixa, deveria
lembrar-se como é difícil a vida para quem quer ir à Cidade Alta e não lhe dão acesso ao Elevador Lacerda.
Felizmente,
essas fórmulas industriais de Carnaval parecem estar se exaurindo. Organizar
uma festa anárquica por natureza é, simplesmente, arrancar-lhe a essência. Depois,
os festins da Elite são contidos, cheio de regras, seguranças e arrebites
extracurriculares. Um dia ruirão todas os camarotes, os trios sairão dos
caminhões e virão para rua, as cordas se esfacelarão e todos serão exatamente
iguais: partilhando a alegria, a dança e
o milagre da vida.
Crato, 24/02/15
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