terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Os Muros da Cidade Alta


J. FLÁVIO VIEIRA

                                               Findo o período momino, o Governador da Bahia,  Rui Costa ,  debruçando-se sobre os crescentes índices de violência no Carnaval, chegou a uma conclusão polêmica : a separação dos foliões que pagam dos que não pagam, por cordas, nos trios elétricos, é o principal motor das cenas de agressividade. “Quanto menos cordas, menos violência teremos no Carnaval”, fechou o governador em entrevista.

                                   Dias antes, um dos maiores compositores brasileiros, Gilberto Gil, dono de um camarote exclusivíssimo no Circuito Barra-Ondina, citou uma frase não menos polêmica, ao ser perguntado sobre o esgotamento daquela modalidade de Carnaval baiano, extremamente industrializado. Gil disse que sempre foi assim no Brasil : As elites nos camarotes assistindo ao povo brincando e se divertindo na avenida. Para ele, essa modalidade de festa à baiana só cresce por conta da tecnologia e dos negócios. A tendência seria, neste oásis da classe rica que são os camarotes, acontecerem festas específicas outras, enquanto na rua, rolaria o carnaval propriamente dito. As duas frases me parecem perfeitas para uma reflexãozinha, neste período quando sacudimos os confetes e serpentinas e deslanchamos o início real de 2015.
                                   O Carnaval, desde seus primórdios, teve sua força no potencial anárquico que carregava consigo. De repente, o mundo virava de ponta cabeça : homens se vestiam de mulher; escravos esguichavam água nos amos; amores ganhavam a eternidade de  quatro dias; maridos escapavam à sorrelfa a despeito da vigilância das esposas. Charangas, blocos de sujos ganhavam a rua e  cada um  se travestia , de repente, dos seus desejos mais íntimos, banhados numa certa cortina de anonimato. A irreverência da festança caiu no gosto dos brasileiros e o Carnaval foi tomando um vulto inesperado, principalmente em alguns polos que se foram tornando mais tradicionais : Rio de Janeiro, Salvador e Recife.
                                    O Mercado, o deus dos dias atuais, rapidamente percebeu que existia ali uma enorme possibilidade de lucro. Só que numa festa tão anárquica era preciso colocar regras fixas para poder cobrar o ingresso. Aí vieram os cordões de isolamento, os camarotes exclusivos, o desfile fechado dos blocos na Sapucaí, a venda de fantasias e adereços, os bailes mominos  em clubes. O Rio de Janeiro terminou por acabar com seu invejável e vultoso carnaval de rua, resumiu-o a um mero espetáculo de arquibancada. As Marchinhas picantes e bem humoradas de outrora foram substituídas pela monotonia de Sambas-Enredos repetitivos e chatos.   Só nos últimos anos, o Rio  vem tentando correr atrás do prejuízo com “A Banda de Ipanema”, o “Monobloco” e outros tantos que tais.
                                   Salvador, que começou com o sonho de Dodô-Armandinho-Osmar,  industrializou seu Carnaval, com seus trio-elétricos fechados por cordão de isolamento e os foliões todos com seus abadás uniformizados e seus camarotes todos caríssimos. O povão ,se quiser brincar, fica de “pipoca” do lado de fora, sujeito aos safanões e aos descuidistas . Talvez muitos dos trombadinhas  contratados pelos mesmos blocos para forçar os pipoqueiros a comprarem seu ingresso nos próximos carnavais. A Axé Music, monocórdica, depois de trinta anos espatifando tímpanos, perdeu fôlego e percebe-se, claramente, que já não traz o fervor e a alegria dos velhos tempos. O formato do Carnaval de Salvador parece estar em pleno declínio.
                                   Restou Recife que mantém a tradição do Carnaval de Rua, com seu frevo que carrega uma bagagem lúdica de mais de um século e sua dança esfuziante e malabarística. Não há cordões de isolamento nos blocos, as fantasias são simples e perfeitamente criativas e não existe apartheid. Todos estão juntos na avenida. Há 25 anos acompanho o Carnaval de Olinda e Recife e conto nos dedos as brigas que presenciei. O “Galo da Madrugada” que arrasta mais de um milhão de foliões de todas as classes sociais dá , anualmente, um exemplo de como é possível juntar tantos , mesmo sob o poder do álcool, alegres, irmanados e tolerantes.
                                   A citação de Rui Costa, assim, me parece perfeita. Vivemos em uma sociedade de castas, apesar de propalarmos a beleza da nossa miscigenação. Os bacanas não querem se misturar com o povaréu. Infelizmente, um dia esses conjuntos têm alguma intersecção. Não dá para morrer de fome quieto  no morro, vendo o vizinho logo abaixo comendo caviar. O Cordão de Isolamento faz com que essas diferenças surjam claras e translúcidas : dentro da corda os cidadãos, fora da corda, a corja.
                                   A frase de Gil, com todo respeito que tenho ao meu compositor brasileiro preferido, me parece muito infeliz. Primeiramente, passa essa separação como uma coisa natural. Os ricos nos camarotes e a pobreza na rua. E mais , transparece uma tendência de imutabilidade: sempre foi assim, meu povo, nunca vai mudar! Por outro lado, Gil esquece que não foi bem isso que aconteceu no Carnaval de Salvador. A Elite já não se conforma em ficar no camarote, ela invadiu a avenida, impermeabilizando-se pelas cordas do blocos  e não permite mais ao povão brincar: “Xô, carniça ! O Carnaval, agora, é privilégio dos bacanas!” Gil que  um dia já morou na Cidade Baixa, deveria lembrar-se como é difícil a vida para quem quer ir à Cidade Alta e  não lhe dão acesso ao Elevador Lacerda.  
                                   Felizmente, essas fórmulas industriais de Carnaval parecem estar se exaurindo. Organizar uma festa anárquica por natureza é, simplesmente, arrancar-lhe a essência. Depois, os festins da Elite são contidos, cheio de regras, seguranças e arrebites extracurriculares. Um dia ruirão todas os camarotes, os trios sairão dos caminhões e virão para rua, as cordas se esfacelarão e todos serão exatamente iguais:  partilhando a alegria, a dança e o milagre da vida.

Crato, 24/02/15

                                   

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