Malvino Dié não podia ser considerado um típico modelo de militar reformado. Calmo, tranquilo,
pouco dado a arroubos e explosões, quase nunca se postando como senhor único da
verdade, ele demonstrava ter convivido mais em mesquitas do que em casernas. O quartel também não o
modelara como um direitista convicto destes que defendem a pena de morte, que
acreditam que bandido bom só se encontra nos campos santos, que comunista é praga que existe em tudo quanto é biboca.
Dié fazia parte de uma raríssima espécie de milicos com pensamento francamente
esquerdista, renegava os Anos de Chumbo e tinha o Capitão Lamarca como seu
ídolo maior. Sabiam muitos que tinha sido heroi de guerra, ex-combatente
enfrentara nazistas e fascistas com um denodo infernal. Ali foi carregando não
um patriotismo barato e imediatista, sabia que estava ajudando não ao seu país,
mas livrando a humanidade de suas ervas daninhas. Mesmo assim, Major Malvino
não contava vantagem, nem falava nunca do alto dos seus galões e da sua patente. Talvez,
por isso mesmo, fosse muito querido e respeitado em toda Matozinho.
Após
a aposentadoria, Dié resolveu retornar à sua terra. Rodara quase todo o Brasil
no exercício da profissão. Cansara de tanto arrumar mala e decidiu terminar o
sonho no mesmo lugar onde um dia o começou. Para ajudar o tempo passar e , para não
enferrujar definitivamente a garrucha, passou a ensinar Educação Física no Ginásio
Espiridião Carqueja e a fazer frequentes corridas solitárias como fundista. Mesmo
já adentrando os oitenta, costumava vencer garotos imberbes e viris, nas competições. Tudo isso fazia de Malvino um personagem mítico na vila e, antes de tudo, uma espécie
de conselheiro oficial de Matozinho. Quase todos admiravam sua educação, sua
fineza de trato, seu passado glorioso e, também, sua franqueza incisiva e
carrascante. Apesar da tranquilidade , da calma, Dié não tinha meias palavras :
elas saíam lentamente da sua boca, mas com força de bala dum-dum.
Eram
muitas e muitas as histórias em Matozinho onde o Major fora chamado a dar sua
opinião e o fizera com sapiência, encerrando ali discussões que se prolongavam
às vezes por dias e meses. Consta nos anais da vila que, diante da crescente
violência dos dias modernos, discutia-se, na praça, sobre as causas maiores
desta realidade. Alguns teimavam que as religiões eram o maior motor das guerras,
outros imputavam a violência às difíceis condições econômicas de boa parte da
população, outros à pouca efetividade da polícia e da justiça. Dié ia chegando na praça da matriz quando alguém
da conferência em que se discutia esse assunto resolveu passar a pergunta ao
Major:
---
Major, se má pregunto, quais são as coisas nesse mundo que, na sua
opinião, mais terminam em crimes, arranca-rabos e confusões ?
Malvino
sem pestanejou:
---
Dinheiro, rola, cu e priquito !
Alguns
dias atrás, Cunegundes Chinxorro, um antigo delegado de Matozinho, resolveu
pedir a opinião do nosso Ouvidor Geral, sobre um problema que estava vivendo.
Enviuvara há uns dois anos, vivia sozinho, com os filhos todos em São Paulo.
Arranjara, ultimamente, uma noiva bem mais nova , comentava-se , à sorrelfa,
que a paixão da mocinha tinha menos a
ver com Motel e mais com Pensão. O certo
é que o velho delegado criara alma nova, andava escamurçando , vestindo roupa
da moda, pintando o bigode e o cabelo e , segundo se comentava, virara um nobre
: tinha sangue azul de tanto tomar umas pílulas de botica que ressuscitavam até
defunto mal cheiroso. O certo é que pessoas mais próximas alertaram Cunegundes
do possível golpe, mas ele, que já
rejuvenescera mais de trinta anos, desde que conhecera a moça, não quis
acreditar naquelas potocas. Estavam é com inveja do capim novo que o velho
pangaré conseguira. De qualquer maneira, pelo sim-pelo-não , teve a ideia de
consultar o amigo Malvino, antigo colega
do Tiro de Guerra. Procurou-o em casa e o pôs a par da situação e pediu seu
sincero parecer sobre o caso. Como
sempre, Dié foi bastante objetivo:
---
Cunegundes, quantos anos o amigo tem ?
---
Interei 84 , mês passado ! Nós somos contemporâneos, Malvino !
---
E a noiva, meu amigo ? Quantas primaveras já viu ?
---
Dezesseis ! É uma florzinha de jasmim, meu amigo ! uma lindeza !
Dié,
então, pensou um pouco, olhos fixos na parede e fechou o relatório:
---
Não vai dá certo , não ! Você, Cunegundes, vai botar um motor de uma Ferrari
Fórmula I, num Ford Bigode 1921 ! Vai
ser caco de peça pra tudo quanto é lado, meu amigo !
Cunegundes,
meio desolado, tentou argumentar de lá. Tinha
oitenta e quatro, mas não estava de se jogar às traças. Ainda estava bem
conservado, não se trocava por um menino de quinze anos . Fora criado com
cuscuz e caldo de mocotó e não com galinha de granja, como esses frangotes de
hoje em dia. E por aí vai. O Conselheiro, por fim, pôs ponto final à
discussão com uma de suas parábolas usuais:
--- Você é que sabe, Cunegundes ! A testa é sua !
Mas ,depois, não diga que não avisei !
Ela dezesseis e você oitenta e quatro, sabe o que é isso , meu amigo ? Orelha
de boi ! Orelha de boi !
Chinxorro,
com cara de menino abestalhado tentando entender a Teoria da Relatividade,
mostrou-se confuso :
---
Orelha de Boi ? Qué que isso qué dizer Malvino ?
---
Você tá muito mais perto do chifre do que da virilha dela , entendeu , seu
Cunegundes ?
J. Flávio Vieira
Crato, 16/03/2015
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