terça-feira, 7 de julho de 2015

De santo e louco, todos temos um pouco.




“A loucura tem razões que a insensatez desconhece”
Millôr Fernandes

Das assombrações que povoaram a minha infância, delas eu lembro bem a que mais temia: as histórias de Lampião e seu bando de cangaceiros que matavam criancinhas com os seus punhais afiados sob o olhar aterrorizado das mães chorosas, histórias estas tão terrificantes quanto aquelas que de tamanho igual me assustavam nos ensinamentos do catecismo católico onde demônios e anjos disputavam as nossas almas maculadas até então somente pelo pecado original. Era ainda no Araripe, cidade onde nasci.
Quando a minha família mudou-se para o Juazeiro do Norte- 06 anos eu tinha- deparei-me com outras figuras que me metiam medo e, ao mesmo tempo, exerciam sobre mim um fascínio insuperável. Eram os ditos “loucos”: João Remexe Bucho, um negro taludo, com expressão facial vigorosa e uma fala incompreensível que durante todo o dia vagava pelas ruas comerciais da cidade a coletar papelões. De pés descalços, uma calça amarrada com uma corda ou cordão de São Francisco, João enfeixava a carga enorme que jogava sobre seus ombros bem largos e desapareceria na noite; Bilinha, era uma pobre e frágil senhora  que perambulava apressada  com um pedaço de papelão na mão para se proteger do sol e, quem sabe, não ver aqueles que a  aperreavam  quando gritavam  seu nome Bilinha!  Ela se danava e respondia com tudo que era de “nome feio” para a sádica diversão de todos; Elegância, finura e delicadeza é que marcavam a personalidade daquele que se auto proclamava-se de “Príncipe Ribamar da Beira Fresca” : inegável que descendesse de reis africanos trazidos como escravos para o Brasil colonial português. Com sua calça preta vincada pela goma e ferro quente que ressaltavam ainda mais as duas listras laterais de cores azuis ou vermelhas, o Príncipe desfilava altivo – algumas vezes até em carro aberto!- pelas ruas da capital da fé. Numa maletinha de madeira que trazia sempre a mão é que guardava suas ferramentas de excelente marceneiro e folhas de papel almaço com os rabiscos dos seus projetos mirabolantes, dentre eles a “fábrica para desentortar bananas” – o que facilitaria a sua ingestão sem engasgo - ou outro de “engarrafar fumaça para exportação”, sobretudo para os States! Que fértil imaginação e espírito empreendedor! ; Já Morreu era outra dessas figuras mitológicas. Quieto chegava perto da gente pra pedir uma esmola e quase não nos fitava. Olhava por cima para um nada que somente ele via. Era enorme! E parecia maior ainda porque o avistávamos  de baixo com os nossos olhinhos  infantis. Já Morreu era pálido, lívido como um defunto e, por isso mesmo, o apelido que o maltratava; Tetê, ou Incha Tetê! , era o doido preferido de toda a molecada porque quando zombado saia numa disparada performática, com braços e pernas mamolengando em busca dos trilhos do trem, estrada/caminho que o levava até o Crato e o trazia de volta. Isso mesmo: era seguindo os trilhos do trem que Tetê chegava ao Crato e lá ficava até sua sandice ser provocada. Outra estória, que soube mais tarde e que não sei verdadeira, é que muito jovem Tetê se viciara em maconha e se desesperava quando faltava o fuminho que era o balsamo para o seu sofrimento.
Já no Crato, de Noventa, Vicente Finim, Antonio Cornim, Chupetinha e outros tantos, Capela era a mais exótica das figuras: era um varapau, pobre, negro, homossexual assumido e valente que só o cão. Desfilava na feira do Crato de calça assungada pegando marreca , miniblusa de cor vistosa e passos cuidadosos sob tamancos plataforma que ressaltavam  ainda mais sua altura e magreza. Capela era elegante, no que se propunha. De dia era Sansão e de noite era Dalila. Suas brigas eram homéricas e sempre estava a desafiar mais de cinco machos metidos a valentes. Só a Polícia, um batalhão inteiro, é que o acalmava. Se destemido não fosse, sobreviveria a tantos preconceitos?
Todos estes anti-heróis, hoje compreendo, são as emblemáticas matrizes dos nossos mais verdadeiros mitos. Que vivam para sempre dentro de nós!
Luiz Carlos Salatiel




2 comentários:

  1. Que deliciosa crônica! Os interiores de todo o Brasil são povoados por esses personagens. Em Brejo Santo tivemos figuras parecidas.

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