“A loucura
tem razões que a insensatez desconhece”
Millôr
Fernandes
Das assombrações que povoaram a minha
infância, delas eu lembro bem a que mais temia: as histórias de Lampião e seu
bando de cangaceiros que matavam criancinhas com os seus punhais afiados sob o
olhar aterrorizado das mães chorosas, histórias estas tão terrificantes quanto
aquelas que de tamanho igual me assustavam nos ensinamentos do catecismo
católico onde demônios e anjos disputavam as nossas almas maculadas até então
somente pelo pecado original. Era ainda no Araripe, cidade onde nasci.
Quando a minha família mudou-se para
o Juazeiro do Norte- 06 anos eu tinha- deparei-me com outras figuras que me
metiam medo e, ao mesmo tempo, exerciam sobre mim um fascínio insuperável. Eram
os ditos “loucos”: João Remexe Bucho,
um negro taludo, com expressão facial vigorosa e uma fala incompreensível que
durante todo o dia vagava pelas ruas comerciais da cidade a coletar papelões.
De pés descalços, uma calça amarrada com uma corda ou cordão de São Francisco,
João enfeixava a carga enorme que jogava sobre seus ombros bem largos e
desapareceria na noite; Bilinha, era
uma pobre e frágil senhora que
perambulava apressada com um pedaço de
papelão na mão para se proteger do sol e, quem sabe, não ver aqueles que a aperreavam quando gritavam seu nome Bilinha!
Ela se danava e respondia com tudo que
era de “nome feio” para a sádica diversão de todos; Elegância, finura e
delicadeza é que marcavam a personalidade daquele que se auto proclamava-se de
“Príncipe Ribamar da Beira Fresca” : inegável
que descendesse de reis africanos trazidos como escravos para o Brasil colonial
português. Com sua calça preta vincada pela goma e ferro quente que ressaltavam
ainda mais as duas listras laterais de cores azuis ou vermelhas, o Príncipe desfilava altivo – algumas
vezes até em carro aberto!- pelas ruas da capital da fé. Numa maletinha de
madeira que trazia sempre a mão é que guardava suas ferramentas de excelente
marceneiro e folhas de papel almaço com os rabiscos dos seus projetos
mirabolantes, dentre eles a “fábrica para desentortar bananas” – o que
facilitaria a sua ingestão sem engasgo - ou outro de “engarrafar fumaça para
exportação”, sobretudo para os States! Que fértil imaginação e espírito
empreendedor! ; Já Morreu era outra
dessas figuras mitológicas. Quieto chegava perto da gente pra pedir uma esmola
e quase não nos fitava. Olhava por cima para um nada que somente ele via. Era
enorme! E parecia maior ainda porque o avistávamos de baixo com os nossos olhinhos infantis. Já
Morreu era pálido, lívido como um defunto e, por isso mesmo, o apelido que
o maltratava; Tetê, ou Incha Tetê! , era o doido preferido de
toda a molecada porque quando zombado saia numa disparada performática, com
braços e pernas mamolengando em busca dos trilhos do trem, estrada/caminho que
o levava até o Crato e o trazia de volta. Isso mesmo: era seguindo os trilhos
do trem que Tetê chegava ao Crato e lá ficava até sua sandice ser provocada. Outra
estória, que soube mais tarde e que não sei verdadeira, é que muito jovem Tetê
se viciara em maconha e se desesperava quando faltava o fuminho que era o balsamo
para o seu sofrimento.
Já no Crato, de Noventa, Vicente Finim, Antonio Cornim, Chupetinha e outros tantos,
Capela era a mais exótica das
figuras: era um varapau, pobre, negro, homossexual assumido e valente que só o
cão. Desfilava na feira do Crato de calça assungada pegando marreca , miniblusa
de cor vistosa e passos cuidadosos sob tamancos plataforma que ressaltavam ainda mais sua altura e magreza. Capela era elegante, no que se propunha.
De dia era Sansão e de noite era Dalila. Suas brigas eram homéricas e sempre
estava a desafiar mais de cinco machos metidos a valentes. Só a Polícia, um
batalhão inteiro, é que o acalmava. Se
destemido não fosse, sobreviveria a tantos preconceitos?
Todos estes anti-heróis, hoje
compreendo, são as emblemáticas matrizes dos nossos mais verdadeiros mitos. Que
vivam para sempre dentro de nós!
Luiz Carlos Salatiel
Que deliciosa crônica! Os interiores de todo o Brasil são povoados por esses personagens. Em Brejo Santo tivemos figuras parecidas.
ResponderExcluirExcelente crônica.
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