segunda-feira, 2 de maio de 2016

UM TIRO NO CORAÇÃO - Demóstenes Ribeiro (*)

Mal anoiteceu, caí num sono profundo e veio a confusão de imagens. Juscelino inaugurava o Orós e na multidão - mostrada pela revista “O Cruzeiro” -, vestindo terno branco, reconheci o meu pai. Jânio chegou e partiu, Jango faria as reformas de base e o Brasil nunca mais seria o mesmo.  
O comício da Central assegurava isso. A UNE, a CGT, o PCB, o dispositivo militar, os sindicatos... Arraes, Brizola, José Serra e o Presidente da República visivelmente emocionado. Os militares, ao meu redor, me deixavam tranquilo. Se eles estavam conosco, como impedir as conquistas populares?
Poucos dias depois, foi repetido o velho truque de nos salvar do comunismo. De novo, noite de terror, tempo sombrio e a ditadura de Vargas renascia piorada. Entre outros, trucidaram o Padre Henrique, mataram o Herzog e sumiram com o Rubem Paiva. Filinto Müller escapou, mas tem muita gente na fila do tribunal de Nuremberg.
Ao sair do cinema, Ustra e Fleury pareciam estar no meu encalço. Não encontrei o meu carro e fui vítima de um grupo de pivetes. Na TV, um ônibus ardia em chamas, a mãe desesperada não sabia o que fazer com o filho vencido pelas drogas e mais um jornalista era decapitado pelo estado islâmico.
Parecia que eu estava em Brasília e um mar de lama, de ondas gigantescas, ia tudo afogando. Ouvi piado de pássaros. Aves de rapina iam e vinham em revoada. Tudo lembrava o Catete e agosto de cinquenta e quatro. No supermercado, a madame não perdoava a bolsa família e o direito das domésticas deixara a elite injuriada.
Voltei à infância. Revi sertanejos mendigando, enterro de anjinhos e mocinhas se prostituindo pra não morrer de fome. Entrei na capela. Outra vez, estava sob o olhar de São Francisco e me surpreendi com a lápide: “requiescat in pace.” A vida inteira me falaram dessa briga, mas nunca me disseram que ele estava sepultado ali.
O sol foi se pondo e me tomei de melancolia com o “Samba Triste,” no saxofone de Stan Getz. Mil corvos pousaram na janela. Traziam no bico a “Última Hora” e sua manchete apavorante: “Um Tiro no Coração!”
O pesadelo foi horrível. Eu tremia e suava em bicas, quando escutei voz infantil. Graças a Deus, alguém veio em meu socorro e começou a me puxar pela perna: vovô veim, vovô veim, acorda preguiçoso! Era a minha neta, Beatriz, pondo um ponto final nessa noite insuportável.
Aliviado, abracei minha princesa e jurei nunca mais me exceder em caipirinha na feijoada da sogra.

(*) Demóstenes Ribeiro - médico-cardiologista, natural de Missão Velha e atuante em Fortaleza.



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