Mal
anoiteceu, caí num sono profundo e veio a confusão de imagens.
Juscelino inaugurava o Orós e na multidão - mostrada pela revista
“O Cruzeiro” -, vestindo terno branco, reconheci o meu pai. Jânio
chegou e partiu, Jango faria as reformas de base e o Brasil nunca
mais seria o mesmo.
O
comício da Central assegurava isso. A UNE, a CGT, o PCB, o
dispositivo militar, os sindicatos... Arraes, Brizola, José Serra e
o Presidente da República visivelmente emocionado. Os militares, ao
meu redor, me deixavam tranquilo. Se eles estavam conosco, como
impedir as conquistas populares?
Poucos
dias depois, foi repetido o velho truque de nos salvar do comunismo.
De novo, noite de terror, tempo sombrio e a ditadura de Vargas
renascia piorada. Entre outros, trucidaram o Padre Henrique, mataram
o Herzog e sumiram com o Rubem Paiva. Filinto Müller escapou, mas
tem muita gente na fila do tribunal de Nuremberg.
Ao
sair do cinema, Ustra e Fleury pareciam estar no meu encalço. Não
encontrei o meu carro e fui vítima de um grupo de pivetes. Na TV,
um ônibus ardia em chamas, a mãe desesperada não sabia o que fazer
com o filho vencido pelas drogas e mais um jornalista era decapitado
pelo estado islâmico.
Parecia que eu estava
em Brasília e um mar de lama, de ondas gigantescas, ia tudo
afogando. Ouvi piado de pássaros. Aves de rapina iam e vinham em
revoada. Tudo lembrava o Catete e agosto de cinquenta e quatro. No
supermercado, a madame não perdoava a bolsa família e o direito
das domésticas deixara a elite injuriada.
Voltei
à infância. Revi sertanejos mendigando, enterro de anjinhos e
mocinhas se prostituindo pra não morrer de fome. Entrei na capela.
Outra vez, estava sob o olhar de São Francisco e me surpreendi com a
lápide: “requiescat in pace.” A vida inteira me falaram
dessa briga, mas nunca me disseram que ele estava sepultado ali.
O
sol foi se pondo e me tomei de melancolia com o “Samba Triste,”
no saxofone de Stan Getz. Mil corvos pousaram na janela. Traziam no
bico a “Última Hora” e sua manchete apavorante: “Um Tiro no
Coração!”
O
pesadelo foi horrível. Eu tremia e suava em bicas, quando escutei
voz infantil. Graças a Deus, alguém veio em meu socorro e começou
a me puxar pela perna: vovô veim, vovô veim, acorda preguiçoso!
Era a minha neta, Beatriz, pondo um ponto final nessa noite
insuportável.
Aliviado, abracei minha
princesa e jurei nunca mais me exceder em caipirinha na feijoada da
sogra.
(*) Demóstenes Ribeiro - médico-cardiologista, natural de Missão Velha e atuante em Fortaleza.
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