segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

PERFUME DE GARDÊNIA - Dr. Demóstenes Ribeiro (Cardiologista)

Perfume de Gardênia


No avião, mais uma vez, lembrei de tudo. A casa e o jardim. A minha mãe trazendo a comida caseira, o meu pai - à cabeceira da mesa - e os oito filhos sentados na posição de sempre. Naquela época era assim. Ao anoitecer, o velho na cadeira de balanço, o cafezinho com os vizinhos e as conversas repetidas de um dia-a-dia feliz.

Uma vez por ano ele ia a Recife ou a Fortaleza e fazia uma grande compra para a loja. Numa dessas viagens, trouxe uvas e maçãs, sabor quase desconhecido para mim. Em outra, uma bola de couro e, em uma outra, o dicionário com o reino encantado e soberano das palavras. Contou que no São Luiz, assistiu a “A Ponte do Rio Kwai,” se comoveu com o sofrimento dos ingleses e eu nunca mais esqueceria a melodia do filme. Depois, chegou o grande rádio de pilha e o meu velho sintonizava o Rio de Janeiro. Era um tempo da “Ave Maria” com o Júlio Louzada, do Repórter Esso e do Altamiro Carrilho e a sua bandinha.

Havia o Grupo Escolar e antes da aula as crianças cantavam “terra do sol, do amor, terra da luz...” Na fila, um menino bem arrumado, com gravata borboleta, destoava dos outros. Era criado por uma tia e parecia assustado. Anos depois, o Ginásio e o padre severo, o maior dos benfeitores daquela comunidade.

Na entrada da cidade, a prefeitura imponente e verde. A igreja, a capela de São Francisco, o cinema, a praça principal e a sombra das algarobas. O trem, de Fortaleza ao Crato, interrompia brevemente a tertúlia, mas logo recomeçava a festa. O mundo inteiro era esperança e alegria: tempo de inocência, juventude e fé.

Mas, quando desembarquei, percebi que tudo mudara. O trânsito perigoso e a sinalização inadequada. A usina fantasma e o canavial, quase extinto, não mais ondulando ao vento. E na minha cidade tudo parecia mal cuidado. A prefeitura em um amarelo ressequido, o grupo escolar e a estação ferroviária abandonados. Ruas estreitas e esgotos a céu aberto, mercados desativados e praças descaracterizadas. Na calçada, sem coragem de entrar, observei a casa. Sem flores no jardim, ela parecia menor e oprimida, todos partiram, a sua pintura descascava e não mais havia o menino que ali morara. As casas também sentem saudades?

Antes da volta, entrei no shopping center. Como em todo lugar, restaurantes fast-food e lojas de grife com letreiros em inglês. Antevi um mundo de obesos e a escravidão do cartão de crédito. Suprema heresia, o templo do consumo e da segregação social, o dragão da maldade na cidade da fé. Ali, ninguém sabia do “Boi Mansinho” nem da Beata Mocinha, e nada seria mais exótico do que um romeiro naquele lugar.

Depois, no avião, curvado à realidade cruel e à impiedade do tempo, fechei os olhos e escondi as lágrimas. Cantei baixinho “Perfume de Gardênia,” adormeci e sonhei com o sol nascendo sobre as moças da Beira Mar.




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