domingo, 2 de abril de 2017

PECADO AMBULANTE - Dr. Demóstenes Ribeiro (Cardiologista)


Aproximava-se o dia do idoso e eu escreveria uma reportagem sobre a terceira idade. Cheguei cedo ao abrigo e ao me entrosar com vários internos três velhinhos não me largaram mais. Falavam da vida e entre eles transparecia grande amizade.

Um deles na infância imitava Joselito e, ao cantar “La Paloma,” também foi chamado de “Pequeno Rouxinol.” Já adulto, sentindo-se um Orlando Silva, se apresentou no show do Mercantil e por pouco não se tornou a voz orgulho do Ceará. No entanto, tudo se transformou e ele perdeu espaço. Restaram-lhe as churrascarias e o apelido de Zé Seresta.

Outro senhor, o Adelino, violão debaixo do braço, perdeu-se no alcoolismo e no difícil caminho da música instrumental. Fumava muito, tinha mania por anúncios fúnebres e ao perceber meu interesse por música surpreendeu-me com o choro número um de Villa-Lobos, logo após a minha chegada.

Um outro, mulato alto de carapinha branca, no abrigo tornou-se o Coronel. Repetidamente, em posição de sentido, ele prestava continência às pessoas e queria tudo em ordem. Era admirador dos militares e muito respeitado. Quando jovem, no Rio de Janeiro, matara mendigos para limpar a cidade e teria sido segurança do Lacerda quando do suicídio de Vargas.
 
E os três destoavam da tristeza geral. O dia passando e histórias se sucedendo ao sabor de lembranças, simpatias e antipatias pessoais. Assim, a velhinha de terço na mão era mais uma viúva que deu a vida pelo marido e filhos. O velho calado e abandonado pela mulher mais nova, herdou uma depressão incurável. E aquela, que fazia tricô e ficou pra tia , no seu delírio, invejava a prima que fugiu com um trapezista de circo e nunca mais voltou.

Alguns sequer sabiam de parentes e não recebiam visitas. A ex-dançarina da TV não se apercebeu do tempo e insistia na saia curta, no batom e no decote, sonhando com um milionário chinês. E o mantra incessante do médico demente: quem fui, quem sou e quem serei... Ali, a principal doença era abandono e solidão.
 
Muitos me cercaram e fiquei pensando... Fez-se, então, um silêncio ensurdecedor quando passou a maca com o lençol branco envolvendo um corpo. Todos entenderam: alguém terminara a viagem feroz, traiçoeira e sem finalidade. Ao violão, Adelino iniciou a “Marcha Fúnebre” e o Coronel, solene, balbuciou “do pó viestes e ao pó retornarás.”
 
Mas, de repente, Esmeralda, a cuidadora boazuda, apagou o cinza. Ela empurrava a cadeira de rodas com a mãe de um deputado. Adelino, brejeiro, mudou rapidamente a música e Zé Seresta – eterno dom-juan – mirou aquela bunda, ajeitou a peruca e atacou, imitando Nelson Gonçalves: “quando ela passa, florindo a calçada, pisando macio ... pecado ambulante!”

(publicado no Diário do Nordeste – pg. 3. 27.7.14)

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