terça-feira, 30 de maio de 2017

OBRIGADO, SENHOR - Demóstenes Ribeiro (Cardiologista)

Obrigado, Senhor! - Demóstenes Ribeiro 

Eu ainda não havia nascido quando meu pai morreu afogado, salvando um italiano. E nunca vi a minha mãe adormecida, fosse eu criança ou adolescência afora. Ao me deitar, ela continuava na máquina de costura; raiava o dia e já estava a trabalhar.

Herdei, assim, uma tendência incontrolável de só fazer o bem. Mas, no serviço militar, surpreendeu-me a habilidade em manejar armas. Tiro certeiro, jamais errei um alvo e com os prêmios que eu ganhei, comprei uma pistola com silenciador.

Ao deixar o quartel e voltar para casa, fiquei indignado, pois a vida da minha mãe mudara para pior. Havia o Borges, um grandalhão barrigudo e irresponsável, exigindo dinheiro e a lhe maltratar. Percebi o desespero da coitada em não saber como resolver essa questão.

Aos poucos, descobri os hábitos do vagabundo e onde ele morava. Certa noite, quando ele desceu do ônibus e a rua estava deserta, deixei-o se afastar um pouco e acionei a pistola. Um tiro na cabeça e mais um crime misterioso, apesar dos muitos inimigos que o filho da puta deixara. Um dia, mamãe olhou nos meus olhos e disse, serenamente, Deus lhe pague!

Daí em diante, embora bem de vida, uma dor esquisita na barriga atrapalhava a paz que eu deveria sentir - um sofrimento que se tornava insuportável. Levaram-me à Emergência e a visão da morte se esboçava. Um Professor, cercado de estudantes, me deu uma atenção que eu não esperava. Era úlcera perfurada. Ele me operou e salvou a minha vida. Não tinha como lhe ser grato, exceto o tiro certeiro, o melhor de mim, se algum dia ele precisasse.

Muito tempo depois, as amizades no Exército levaram-me para uma multinacional responsável pela segurança de autoridades. Naquele dia, FHC viria inaugurar o novo hospital e eu estava entre os escalados. Em meio a tanta gente, vislumbrei o Professor. Não era mais o homem vibrante que me curara. Acabrunhado, envelhecido, triste. Não sou doutor, mas ele parecia sofrer de uma doença da alma. Por fim, nos aproximamos.
- Mestre, lembra de mim? O Senhor salvou minha vida, sou Plácido, tiro certeiro, da úlcera perfurada!

- Plácido, como vai, preciso de você, amanhã venha fazer uma revisão.

No dia seguinte, a sós e com as portas fechadas, ele me falou da sua desgraça. O casamento desandara. Foram-se as alianças, o respeito e a amizade. Era vítima de chacotas e não mais conseguia trabalhar. A mulher perdera totalmente a discrição. Às vezes, chegava embriagada. Diziam ter vários amantes, nem o pior dos inimigos faria tanta maldade. Como encarar os pacientes, os estudantes, os colegas, a vida enfim? Você me prometeu, ele repetiu muitas vezes, e sei que não me fará ingratidão.

Descobri toda a rotina da putana. Ela saía do estacionamento de uma igreja e ia rezar num motel. Sem despertar suspeita, como a esperar alguém, eu fiquei por perto. Parou um carro, a outra fez sinal, ela entrou e beijaram-se na boca. A vaca, ainda por cima, era sapato. Anunciei o assalto. Deram-me bolsas, telefones, relógios... Em troca, um tiro em cada cabeça - pistola com silenciador.

Muito rápido, rua quase deserta, fugi no meu carro. Adiante, saquei a placa fria e joguei com as coisas num matagal. As luvas, eu queimei quando cheguei em casa. Após um banho, chamei um rádio-táxi, fui pro aeroporto e embarquei pra Salvador. Um árabe importante chegaria e eu faria parte da segurança.

No hotel, após uma oração, tomava o café da manhã e pensava em minha mãe, quando o celular tocou. A ligação breve, sem muita nitidez, veio de um telefone público. Mas era uma voz conhecida, de novo firme e alegre, dizendo tão somente: obrigado, Senhor !

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