segunda-feira, 6 de novembro de 2017

VENTO, VIOLONCELO, CASARÃO... - Dr. Demóstenes Ribeiro (*)


Ninguém ressuscita um morto... Perda de tempo, doutor!”

Voz calma e segura, a transformação de Joaquim, desde a morte do professor Maciel, era o assunto predileto da cidade. No velório, ele de terno e gravata, a cabeça repentinamente branca, foi a surpresa geral. O último a se despedir, beijou demoradamente o morto, soluçando, sem se importar que lhe ouvissem, meu filho, meu querido, meu irmão... Desde então, segundo a acompanhante, não dormia, não se alimentava e nada lhe interessava mais.

É um morto a quem o senhor está atendendo agora... Eu tive uma vida sem graça, mesmo quando a Celeste ficou viúva e fui trabalhar no cartório. Ela era sem filhos e bem mais velha do que eu. Logo nos casamos e vivíamos a paz doméstica entre aulas de violoncelo, escrituras e certidões.

A cidade mudava lentamente. Os velhos partiam, as crianças ficavam jovens e um adolescente de olhos claros e cabelos encaracolados lembrava o Davi, de Michelangelo, a obra prima que o senhor conhece. Como tantos outros, ele foi embora, pois precisava estudar e trabalhar.

Quando um infarto levou a Celeste, a minha vida sofreu uma irrupção. Eu tinha quase sessenta anos e fui conhecer o Rio de Janeiro. Na rodoviária, muito educado, ele estava à minha espera. Agora, homem feito, não mais adolescente, parecia Marlon Brando em Sindicato de Ladrões.

E foi à noite, em Copacabana, entre vários chopes, que ele me contou das suas dificuldades iniciais. Morou na Lapa, comeu no Calabouço e sobreviveu à turbulência de sessenta e oito graças a um diplomata espanhol. A amizade profunda rendeu-lhe um emprego no consulado. Aprendeu línguas e boas maneiras. Não era mais um rude, falava francês e inglês, sabia de artes e encenação.

Então, fomos a Petrópolis, sorvetes no Corcovado, emoção no Pão de Açúcar e bicicletas em Paquetá. Mas, o Rio era outro e ele se sentia ameaçado. Mas, se eu ficasse ao seu lado, ele voltaria. Criaria na cidade a “Escola de Línguas e Artes Plásticas Professor Maciel.” Poderíamos reformar o velho casarão do pai da Celeste e, assim, a cultura chegaria à região.

Um mês depois, ele se mudou para minha casa. Certo amanhecer, lhe despertei com acordes de “In My Life” e a canção de Lennon e McCartney, no meu violoncelo, lhe causou uma profunda comoção.

Outro dia, empolgado e para que todos vissem, afixou uma placa em frente ao prédio: “Futuras Instalações – Escola de Línguas e Artes Plásticas Professor Maciel. Depois foi ao banco tratar do empréstimo para a reforma. No fusca, ao se chocar com um ônibus, somente ele morreu, somente ele... Esqueça o ressuscitar dos mortos e não perca tempo, Doutor!”

Preocupado, solicitei exames, prescrevi um antidepressivo, lembrei de “Morte em Veneza” e agendei um retorno muito em breve. Mas, Joaquim desapareceu e, dias depois, num amanhecer, foi encontrado enforcado. O corpo pendia da grande árvore que existia em frente ao casarão. Embora psiquiatra, eu nunca mais aceitei um paciente como aquele.

Até hoje, o casarão continua abandonado. E o povo conta que em noites de chuva, quando sopra o vento, suas portas batem, surge um gato preto e escapa lá de dentro, num misto de violoncelo e voz humana, meio grito, meio gemido: meu filho, meu querido, meu irmão...


(*) Médico-cardiologista 















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