“Ninguém
ressuscita um morto... Perda de tempo, doutor!”
– Voz
calma e segura, a transformação de Joaquim, desde a morte do
professor Maciel, era o assunto predileto da cidade. No velório, ele
de terno e gravata, a cabeça repentinamente branca, foi a surpresa
geral. O último a se despedir, beijou demoradamente o morto,
soluçando, sem se importar que lhe ouvissem, meu filho, meu querido,
meu irmão... Desde então, segundo a acompanhante, não dormia, não
se alimentava e nada lhe interessava mais.
“É
um morto a quem o senhor está atendendo agora... Eu tive uma vida
sem graça, mesmo quando a Celeste ficou viúva e fui trabalhar no
cartório. Ela era sem filhos e bem mais velha do que eu. Logo nos
casamos e vivíamos a paz doméstica entre aulas de violoncelo,
escrituras e certidões.
A
cidade mudava lentamente. Os velhos partiam, as crianças ficavam
jovens e um adolescente de olhos claros e cabelos encaracolados
lembrava o Davi, de Michelangelo, a obra prima que o senhor
conhece. Como tantos outros, ele foi embora, pois precisava estudar
e trabalhar.
Quando
um infarto levou a Celeste, a minha vida sofreu uma irrupção. Eu
tinha quase sessenta anos e fui conhecer o Rio de Janeiro. Na
rodoviária, muito educado, ele estava à minha espera. Agora, homem
feito, não mais adolescente, parecia Marlon Brando em Sindicato
de Ladrões.
E
foi à noite, em Copacabana, entre vários chopes, que ele me contou
das suas dificuldades iniciais. Morou na Lapa, comeu no Calabouço
e sobreviveu à turbulência de sessenta e oito graças a um
diplomata espanhol. A amizade profunda rendeu-lhe um emprego no
consulado. Aprendeu línguas e boas maneiras. Não era mais um rude,
falava francês e inglês, sabia de artes e encenação.
Então,
fomos a Petrópolis, sorvetes no Corcovado, emoção no Pão de
Açúcar e bicicletas em Paquetá. Mas, o Rio era outro e ele se
sentia ameaçado. Mas, se eu ficasse ao seu lado, ele voltaria.
Criaria na cidade a “Escola de Línguas e Artes Plásticas
Professor Maciel.” Poderíamos reformar o velho casarão do pai
da Celeste e, assim, a cultura chegaria à região.
Um
mês depois, ele se mudou para minha casa. Certo amanhecer, lhe
despertei com acordes de “In My Life” e a canção de
Lennon e McCartney, no meu violoncelo,
lhe causou uma profunda comoção.
Outro
dia, empolgado e para que todos vissem, afixou uma placa em frente ao
prédio: “Futuras Instalações – Escola de Línguas e Artes
Plásticas Professor Maciel.” Depois foi ao banco tratar
do empréstimo para a reforma. No fusca, ao se chocar com um ônibus,
somente ele morreu, somente ele... Esqueça o ressuscitar dos mortos
e não perca tempo, Doutor!”
Preocupado, solicitei exames,
prescrevi um antidepressivo, lembrei de “Morte em Veneza” e
agendei um retorno muito em breve. Mas, Joaquim desapareceu e, dias
depois, num amanhecer, foi encontrado enforcado. O corpo pendia da
grande árvore que existia em frente ao casarão. Embora psiquiatra,
eu nunca mais aceitei um paciente como aquele.
Até
hoje, o casarão continua abandonado. E o povo conta que em noites de
chuva, quando sopra o vento, suas portas batem, surge um gato preto e
escapa lá de dentro, num misto de violoncelo e voz humana, meio
grito, meio gemido: meu filho, meu querido, meu irmão...
(*) Médico-cardiologista
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