domingo, 2 de setembro de 2018

ADEUS,,, "MANTOS SAGRADOS" - Jose Nilton Mariano Saraiva


Confeccionados em edições limitadas, virgens, intocados e inocentes, eram assim os uniformes dos nossos principais clubes de futebol, até bem pouco tempo. E tais predicados serviam para realçar a beleza, o esplendor e magia de cada um deles. Havia até uma certa timidez, certo receio, um excessivo respeito que nos impedia de maculá-los, acessá-los, sequer tocá-los.

O símbolo do clube - e só ele - soberano e galhardo, pontificava e realçava, à altura do peito esquerdo, sobreposto às cores respectivas. A camisa de um Vasco da Gama, um São Paulo, um Fluminense ou um Palmeiras se nos apresentava sóbria, elegante, indevassável, imaculadamente soberana em sua pureza. Nada capaz de nodoá-las. Além do símbolo-emblema à frente, apenas a numeração às costas. Era, pois, motivo de orgulho pra todos nós, torcedores. Pode-se inferir que foi ali, via imaginário popular, que se materializou seu batismo como “manto sagrado” (ou uma “segunda pele”).

Mas, aí, adentrou no campo de futebol um parceiro que mais tarde se revelaria por demais “guloso”, a televisão, já que trazendo a reboque um avassalador e temível rolo-compressor: os “patrocinadores”. Extremamente profissionais, poderosos, fortes, exigentes e cheios da grana, comendo pelas “beiradas” começaram o processo de demolição progressiva do romantismo imiscuído numa atividade até então praticamente amadora e, até, marginal.

Assim é que, num primeiro momento, as bordas do campo de futebol (laterais) outrora vazias, solitárias, desprezadas e sem qualquer valor mercantil, repentinamente se viram povoadas com dezenas de placas, anúncios, propagandas diversas; estáticas, em formatos variáveis e multicoloridos, tais instrumentos anunciavam desde bebidas alcoólicas a peças íntimas femininas, do másculo aparelho de barbear ao suave desodorante direcionado à mulher. Tudo isso veiculado pela TV, para milhões de telespectadores, tornou muita gente milionária.

Estava dado o primeiro passo para a “profissionalização” definitiva das nossas principais equipes. E então, mais que rapidamente, foi dado o passo seguinte: “vapt-vupt”, sem que sequer nos déssemos conta, das bordas do campo o insaciável e esperto “patrocinador” resolveu pular adiante, alçar voo rumo a um espaço mais visível, generoso, abrangente e em permanente exposição: e dessa forma, agindo sem quaisquer concessões ou escrúpulos, foi que os “mantos-sagrados” das nossas principais agremiações foram fria e calculadamente desvirginados, violentados, estuprados. Irreconhecíveis se tornaram, perderam a magia.

Ainda insatisfeitos, a partir de então os próprios jogadores de futebol foram literalmente obrigados e passaram a funcionar como eficientes “outdoors” ambulantes, a anunciar um produto qualquer. Para tanto, os novos “donos do futebol” trataram de instruir e catequiza-los a trocarem as camisas entre si, ao final de cada pugna, ou mesmo a as arremessaram para a torcida, objetivando, evidentemente, difundir a “marca”, fazê-la circular, se tornar conhecida além do campo de jogo ou do próprio estádio.

E tem mais: se antes os nossos craques se notabilizavam pelo belo sentimento-amadorístico do “amor à camisa” (pela qual só faltavam se matar em campo), pela siderúrgica fidelidade ao clube de origem (a ponto de dificilmente se transferirem para um outro) chegando mesmo a serem confundidos com a própria instituição (Pelé, no Santos, Roberto Dinamite, no Vasco e Zico, no Flamengo são exemplos emblemáticos), pois bem, como se não bastasse isso, repentinamente o patrocínio se individualiza na figura do próprio craque, avança sobre o esportista, peita e corrompe inexoravelmente o homem.

E haja “direito de imagem” pra cá, “direito de imagem pra lá”, que implica em usar um boné de uma determinada marca, uma chuteira de uma cor tal, uma prosaica “fitinha” (com a marca estampada) a prender o cabelo, e por aí vai, em troca de montanhas de dinheiro.

Resumo desse capitalismo selvagem ??? A TV transformou o futebol num rendoso, inesgotável e próspero negócio, com dirigentes e jogadores “nadando” em dinheiro. E haja propina. Nem que para isso o torcedor seja dia-a-dia desrespeitado, ignorado, relegado a ser um mero objeto de consumo, simplório coadjuvante, sem nenhum poder de escolha; assim, os jogos tanto podem começar ao sol inclemente do meio-dia, como avançar pela madrugada e terminar no dia seguinte; o calendário vai de segunda a domingo e quem não achar correto que se exploda.

Quanto ao nosso querido “manto sagrado”, foi pro beléleu, voou pro espaço, escafedeu-se, sumiu; é mais fácil encontrar uma agulha no palheiro que localizar, mesmo com uma possante lupa, o “símbolo do clube” em camisas repletas de propagandas às mais diversas (e normalmente de um tremendo mau gosto). Até a seleção nacional se rendeu ao mercantilismo do patrocínio e a “amarelinha” já ostenta as tais “marcas”.

E foi, a partir daí, ao passar a integrar permanentemente a grade de programação das TVs, o futebol deixou de ser uma atividade “marginal” e seus jogadores passaram à condição de verdadeiros “ídolos” (e literalmente disputados no tapa pelas mulheres).

Que, ante a perspectiva de também aparecerem na “telinha”, em bandos passaram a frequentar os estádios da vida (acompanhadas dos parceiros e da própria família), dando-lhes um colorido todo especial, mais familiar. 

Pelo menos, isso de bom nos propiciou a profissionalização do futebol.

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