ORELHAS – Doutor Demóstenes Ribeiro (*)
No final dos anos sessenta, a ditadura militar sentindo crescente insatisfação
da classe média buscou agradá-la facilitando aos jovens o acesso indiscriminado
à universidade. Era o tempo dos excedentes e toda a semana aumentava o número
de alunos. As aulas eram precárias, auditórios e laboratórios não comportavam
tanta gente e a formação do pessoal, inevitavelmente inadequada.
E foi assim, que Florisvando, um dos últimos excedentes, chegou lá. Da
zona rural de Salgueiro, era baixinho e míope, de barba rala, cabeludo e muito
calado. Magro e pálido, ocasionalmente, nos sobrados do Recife Velho ou da Rua
do Rangel, buscava prostitutas gordas e logo ficou conhecido por “Taradim”, pois
era também um dos mais entusiastas praticantes do vício solitário.
Ele almoçava no restaurante
universitário e morava na Casa do Estudante, onde jantava um dia macarrão com
farofa e no outro, farofa com macarrão – não tinha outra escolha, o cardápio
era assim mesmo. Tomava o ônibus da reitoria para chegar à faculdade. Nesse transporte gratuito, superlotado,
sempre entrava mais um e o motorista nunca conseguia fechar a porta.
De todo jeito, a moçada ia em frente, pois outro ônibus do Derby à
Cidade Universitária, só bem depois de meia hora. Então, com muito mais gente
em pé do que sentada, no percurso era um esfrega-esfrega geral, tolerado e sem
muita reclamação: fazer o quê? Uma ou outra freada brusca variava a arrumação e
fazia a alegria dos tarados.
Naquele dia, seu aniversário,
Florisvando entrou no ônibus com a braguilha aberta, e logo se aproximou de
Orisvalda. Ela, estudante de Enfermagem, evangélica e muito compenetrada,
sentara na cadeira junto ao corredor, com a bíblia nos joelhos e os olhos fixos
no “Apocalipse de São
João”. Trajava vestido azul-marinho, de mangas compridas, e que
ia do pescoço até abaixo dos joelhos. Maquiagem discreta, em tudo lembrava uma
senhora.
O ônibus seguia: Madalena, Caxangá, Várzea, Cordeiro... E de repente,
sem ninguém se dar conta, num furor diabólico de guerreiro enfurecido, a espada
de Florisvando subiu pelo ombro Orisvalda, foi ao pescoço e a face, e avançou
progressivamente até àquela orelha que o deixara maluco e incontrolado.
A certa altura, ele explodiu em espasmos convulsivos, e então veio o grito
fanhoso e esganiçado de Orisvalda: Socorro! Motorista pára o ônibus, um tarado encheu o meu ouvido
com uma gosma branca !
Aparentemente, somente eu assistira toda a cena. Florisvando, sem mais
ninguém perceber, esgueirando-se como um fantasma entre a moçada atônita,
saltou na Caxangá e fugiu em direção ao cemitério da Várzea. À noite, na Casa
do Estudante, pediu-me por tudo no mundo, que eu não contasse o acontecido a
ninguém.
Anos depois, calvo e gordo, quase irreconhecível, eu o reencontrei num supermercado:
Taradim, quanto tempo! Como vai a vida, rapaz?
Extremamente formal, me respondeu: devo-lhe um favor imenso, mas nunca mais me
chame assim. Depois de muitos anos, me formei em direito e hoje sou oficial de Justiça.
Tenho mulher e filhos, e somente uma orelha ou outra ainda me deixa agoniado.
(*) Dr. Demóstenes Ribeiro é natural de Missão Velha-CE e hoje, médico cardiologista, reside e exerce a profissão em Fortaleza-CE
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