domingo, 25 de agosto de 2024

 

JOSÉ (Dr. Demóstenes Ribeiro)

O tio Afonso, atendendo ao pedido da minha mãe, acolheu-me ainda quase-menino em sua casa. Eram os anos quarenta, começara a fuga do campo e se tornara evidente que naquela região a vida rural não mais conduziria a nada. 

Embora vindo da roça, vi que eu era diferente. Tornei-me balconista da loja de tecidos e, com a doença do tio, logo passei a gerente. Daí, a inveja e a hostilidade que não pararam mais. 

“Cumpade” era uma preta velha corcunda e miúda, que morava nos fundos da casa do meu tio. Independente do gênero, a todos ela chamava assim, por isso esse apelido inevitável. Vestia marrom, era neta de escravos e agregada da família. Gostava de mim, me dava atenção e aliviava as minhas dificuldades. Muitos anos depois, quando ela morreu, com eterna gratidão e à beira do túmulo, lhe fiz a oração do adeus. Quase não havia ninguém no cemitério.

Certo dia, com a morte do tio Afonso, o clima tornou-se insuportável. Então, numa ousadia tremenda, me desliguei da empresa e, em sociedade com um primo, iniciei uma pequena loja. O “Armazém do Povo” ia bem e trouxe para a cidade um irmão mais novo que também prosperou no comércio. Restava o irmão caçula, ao qual eu também teria o dever de ajudar.

José, moço bonito e boa prosa, era chegado a uma cachaça e com ele as coisas nunca iam bem. A sua lojinha faliu e ele tentou o Rio de Janeiro. Achou que o parente importante facilitaria a sua vida na capital federal. Ledo engano. Logo estaria de volta e a dizer que o cearense só é feliz na sua terra.

Mudou-se para Juazeiro e logo se apaixonou por Silvana, uma filha do “Chico Boneco”, certo romeiro alagoano devoto do Padre Cícero, e que apresentava marionetes. O romance terminou em casamento. Na fotografia formavam um casal bonito, mas a vida real era só dificuldade. Zaira, a minha mulher, não gostava dela. 

Então, meses depois – eu não sei como -, ele se elegeu vereador.  As brigas e os porres eram constantes. Com o meu aval e um golpe de sorte, conseguira ser viajante de uma grande firma de tecidos do Recife – “Queiroz Campos Tecidos S.A.” Num Jeep Willis, percorria todo o estado. 

Um dia, levemente embriagado, veio nos visitar e levou meus filhos para tomar sorvete. As crianças nunca haviam provado essa delícia e hoje ainda guardam aquela lembrança inesquecível da infância. 

Até que, numa dessas viagens, virou o carro. A capota de aço salvou-lhe a vida, mas foi demitido, perdeu o jeep e passou a viver de biscates. Ganhava uns trocados vendendo discos e muitas vezes o ajudei comprando “Nelson Gonçalves, Ivanido, Zé Calixto” e outros mais que ouvíamos na radiola “Telefunken”, da qual eu era muito enciumado.

Ele também se virava exibindo filmes em pequenos cinemas do interior. Eram chanchadas ou faroestes. Trazia alegria com Oscarito e Grande Otelo, tiros e emoções com Audie Murphy e Randolph Scott. Certo dia, embriagado, convenceu o padre de um lugarejo a exibir “E Deus criou a mulher...”, com Brigitte Bardot, no salão paroquial. Seria um filme diferente sobre a criação do mundo - convenceu o vigário. Quando a loura apareceu nuinha, Ambrósia gritou é Satanás! As beatas afogaram o projetor em água-benta e ele saiu fugido, excomungado e nunca mais pode mostrar qualquer filme em toda a diocese.

O tempo nos afastou, porém, sabendo-o muito doente, resolvi visitá-lo. Trocamos reminiscências, sempre com o seu filho ao lado. Orgulhoso, na saída, encarou-me sério e falou: ele está se formando, logo teremos um médico. Muito obrigado por tudo. Como você vê, a minha vida não foi uma completa inutilidade.


Dr. Demóstenes Ribeiro é médico cardiologista, natural de Missão Velha, residente e atuante em Fortaleza.

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