domingo, 22 de julho de 2007

coisas pra dividir com meus irmãos kariris


Por que os homens escrevem, contam, lêem, vêem, ouvem, encenam e filmam histórias? Que necessidade é esta que os impulsiona desde remotas eras, quando as ásperas paredes das cavernas constituíam a única superfície segura de escrita, de pictóricas formas? O filósofo espanhol Ortega y Gasset disse certa vez: "A nota mais trivial, porém ao mesmo tempo a mais importante da vida humana, é que o homem não tem outro remédio senão fazer alguma coisa para manter-se na existência. A vida nos é dada, visto que nós não a damos a nós mesmos, senão que nos encontramos nela de uma hora para outra e sem saber como". Na existência nos puseram e com ela e a ela devemos nos conformar, por mais infelizes que sejamos. Ou fazemos isso ou optamos pelo suicídio.Um dos "remédios", uma dessas "coisas" a fazer "para manter-se na existência" que não solicitamos e que custamos a absorver, é precisamente a ficção, essa irreprimível propensão humana a contar histórias, naturalmente uma defesa, ou mesmo um "drible", uma remediação por parte do indivíduo, que, tanto mais exilado quanto mais vive, é talvez filho do acaso. "Desde que nasci, ainda não despertei", brada Pio Baroja num dos seus contos, intuitivamente flagrado pela consciência do caráter absurdo da existência humana, que, exatamente por se assemelhar a uma dádiva para a qual o homem não estava preparado, é melhor aceita se tomada por um longo sonho cujo despertar é a morte.
Este drible do indivíduo sobre a existência concretiza-se mediante o desejo comum a todos os homens de viver outras vidas. É uma concessão que se permite a cada nova história, nova aventura. Uma só vida, num único corpo, é pouco para o homem. Mais que prisão, significa dor, impotência. Logo, ao menos em imaginação, ele precisa sofrer sua metamorfose. É o que lhe sobra, pois tudo o mais é mistério. O Dom Quixote, de Cervantes, cuja primeira parte veio a público em 1605, já constitui, com larga antecipação e alta carga de ironia, uma expressão desse desejo humano: de tanto ler histórias de cavalaria, um homem se presume também um cavaleiro e sai em busca de aventuras. Torna-se outro em vida. Confere a si mesmo outra existência, possível para todos, mas improvável para a grande maioria dos homens, confinados que estão aos seus afazeres diários, à própria necessidade de viver ou, em alguns casos, de sobreviver.
A mais exata manifestação narrativa de nosso tempo, o cinema, que instaura o outro em sua forma mais viva, quase sem diferenças, não se furta nunca a essa vontade. Pelo contrário, sempre a tem em vista. Quanto mais realista um filme, mais nos sentimos dentro dele, a viver, muito próximos da plenitude e da verdade, a aventura que move aquelas pessoas resumidas a movimento e luz. Através do cinema, portanto, tornamo-nos muitos seres em uma única vida apenas, que é a nossa e que só a custo arrastamos, pois viver, se pararmos para pensar profundamente no assunto, por um minuto que seja, é insólito, sem sentido, se não um peso excessivo, uma punição, um confinamento. Mas, se quisermos, poderemos nos tornar trezentos, três mil! É o que acontece, a cada novo filme: variamo-nos, ficcionalizamo-nos. O filósofo francês Clément Rosset define o cinema mais ou menos sob essa perspectiva: "Por estar tão próxima do real, a imagem cinematográfica faz com que vejamos um outro que é quase o mesmo. Na sala de projeção não abandonamos o mundo; estamos quase num universo diferente, que se encontra, porém, no nosso espaço-tempo. Há uma magia propriamente real neste passeio sem custos". O cinema permite, portanto, a instauração do outro, que, no entanto, não deixa de ser o mesmo, de continuar a vida, a humana vida.
Um representativo exemplo literário de fixação do desejo humano de viver outras vidas é o relato do romancista francês Julien Green, cujo título, Se eu fosse você..., já dá a medida e intensidade do seu assunto. Fabien é um jovem insatisfeito com a sua existência. Um belo dia conhece Brittomart, um subalterno do demônio, que, mediante uma fórmula verbal, lhe confere o poder de mudar de vida, viver a existência de outra pessoa. Daí por diante, Fabien perpetrará um círculo de experimentais transformações sem jamais se dar por satisfeito: torna-se um homem rico, depois um outro dotado de imbatível força física, ocupa mais tarde o corpo de um fervoroso servo de Deus e, por fim, se transforma num homem de irresistível beleza. Sua insatisfação, contudo, não se dissipa. A cada transformação, seu desejo de mudança se renova. No fundo, o que ele busca é a perfeição, e esta é impossível. Quando afinal se decide por voltar a ser ele próprio, descobre que já não é senhor de sua vontade, nem de sua vida, nem de seu corpo, que pertencem agora ao demônio. Fabien pagou um preço à altura do poder que lhe foi conferido. E tarde demais descobriu que a melhor vida, a verdadeira, é a nossa própria, por constituir a única que possuímos.
O motivo por que as pessoas se permitem sucumbir ao fascínio das histórias, ocupando sem agravo tanto o papel de emissores quanto o de receptores, está intimamente ligado ao prazer que alcançam em experimentar, de longe, num envolvimento casual porém desejado, novas realidades e outras consciências, as quais as destacam de seu cotidiano fastidioso e precário. Através da ficção nossa vida se torna diversa, e nos acrescentamos experiências que necessariamente não viveremos, mas que, assim mesmo, nos enchem de luz e sentido. Todos os homens almejam uma outra vida e, no fundo, ainda que inconscientemente, a procuram. Isso é certo, pois nunca estão satisfeitos, o dia-a-dia monótono os sufoca; querem sempre algo mais, uma fração de "outra coisa", mais benéfica ou, se não isso, mais trágica. Mesmo porque, como bem disse o escritor húngaro Dezsö Kosztolányi: "Não há no mundo homem inteiramente feliz. Não há, nem pode haver". Portanto, é por "mudança" que os homens se entregam de corpo e alma às histórias: para se sentirem outros, aos quais a felicidade sorria ou o desatino faça sofrer. No breve e quimérico espaço de um relato ficcional a existência humana, por um tempo, se transforma, passa a outra coisa, subverte a dolorosa imposição do acaso – ou de Deus.
MAYRANT GALLO. Ensaio publicado no Correio da Bahia, em 14/12/2003.

2 comentários:

  1. Somos gratos ao CaririCULT pelo conteúdo e, quando sai um texto filosófico como o seu, LUPEU, o blog já se justifica.

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  2. Caro Lupeu, fiquei surpreso com a reprodução do meu ensaio aqui. E grato, também. Seu blogue é uma maravilha! Cordialmente, Mayrant Gallo.

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