domingo, 22 de julho de 2007

A vida por um Fio




A cadeira de espaldar derreava-se na varanda da casa grande.O varandado : uma bocarra sorrindo escancaradamente para o mundo. De longe, a casa erguida estrategicamente, no alto, parecia um observatório privilegiado. A cadeira como que aguardava, tácita, um astronauta, pronto a tomar assento, para uma viagem espacial. A paisagem adiante : um sertão marciano pleno de crateras, um mar da tranqüilidade acoimado pelo cinza . Ao canto um fícus teimava em emprestar um pouco de verde à insípida xilogravura natural. A vida imersa na sinfonia de uma só nota : Sol!
Sem que a crua unicidade da paisagem se turve, a mulher refestela-se na cadeira e fita o horizonte com olhos vagos que mergulham mais no insondável abismo interior que na brusca infinitude do universo. Cabelos longos caindo à cintura , mechados pela aquarela do tempo.Brota-lhe uma quase imperceptível inquietude: como uma mosca num centro cirúrgico.A aridez, a sequidão exterior transpareciam ser apenas uma extensão do deserto que lhe incendiava as entranhas. O mesmo saara descomunal engolia a fauna,lambia a flora , empalhava as almas. Num esgar mecânico, as mãos trêfegas dedilharam alguns fios do longo cabelo que numa cascata irregular lhe caia ao colo. Pertinazes , como que debulhando religiosamente os mistérios do terço, os finos dedos, marcados por unhas de um vermelho opaco, sem viço, terminaram por escolher, aleatoriamente, um longo fio da mecha . Os olhos, súbito, contraíram um brilho estranho e se fixaram, hipnoticamente , naquele fiozinho. Diria-se tratar-se de uma revelação: como Maria bafejada pelo Anjo ou Carter frente a Tutancâmon.
Dedilhou , cuidadosamente, o fio como se tocasse uma ária numa intangível flauta transversal. Aos poucos, o mundo ao derredor se foi esmaecendo. Seguiu o fio que lhe desvendava , estranhamente, meandros da sua existência, de há muito esquecidos. O rolo de um filme se foi projetando a sua frente. A tortuosidade do fio , na raiz do cabelo,já enovelado um dia em feitio de trança, a conectou com a visão da praça da matriz, fervilhando de gente. Como arrancou aquela imagem da infância e, mais, colhida de cima da roda-gigante ? Um pouco adiante, aquela discretíssima pinta acaju, a fez saltar, como mocinha, para o portão da casa grande, em noite de lua cheia: ainda umedeceu os lábios ao sentir o beijo adoçado pelo tesão e pelo medo. Ah! E este esgarçamento quase que imperceptível aqui um pouco adiante? O filho lhe chorava inconsolável nos braços e a porta semi-aberta, esperando alguém que jamais retornaria.Deteve-se , algo maravilhada, percebendo um discreto tom jambo, no fio e ainda , cerrando um pouco o olhos, dançou os últimos acordes de “Only You”: lá fora chovia , uma chuvinha anunciadora de bonança e temporal. A partir daqui, vejam, respingos de névoa teimam em salpicar o cabelo. As imagens, acompanhando o brusco orvalhar do fio, já se projetam em flashs quase que estroboscópicos: a rua deserta, o suor que escorre, o decúbito dorsal, a lágrima rubra, a solidão, o entreabrir estonteante do girassol. Stop ! Uma mão oculta apertou a tecla do controle remoto do tempo. Do finalzinho do fio brotou a imagem que lhe paralisou a retina. Uma folha de manacá se desprega do galho e, em vertiginoso rodopio, mergulha para o abismo. Os dedos da mulher se contorcem e o fio se desgarra da raiz como que imitando o vôo da folha.O vento carrega o fio, mas leva lhe junto estilhaços de vida. Ela percebe , claramente: Ariadne lhe cortou os caminhos e veredas e agora estará ali, indefesa: a mercê das circunvoluções do labirinto e da voracidade do Minotauro.

2 comentários:

  1. O blog está uma maravilha! Era tudo que a gente daqui de fora estava precisando.

    Um abraço fraterno.

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  2. Que inspiração, seu Zé!

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