terça-feira, 17 de julho de 2007

Eu e o Teatro

Como de hábito, eu me antecipo aos horários marcados e fico monitorando a chegada de todo o grupo - o que não me deixa mais tranqüilo. No adiantado da hora aproveito para checar toda a bagagem que envolve diretamente o espetáculo: figurino, material cenográfico, adereços, etc. Tudo certo! São quase dez da noite e ainda faltam dois atores e um dos músicos. O espetáculo envolve quinze pessoas entre atores, músicos e técnicos. Até que enfim partimos já perto das onze. O ônibus é bem confortável, com ar-condicionado e cadeiras reclináveis, bem apropriadas para esta viagem de dez dias com o espetáculo em apresentações pelo interior e capital do Ceará. “O Zé de Matos...” é um grande espetáculo! Uma ode ao poeta Zé de Matos e ao Crato! É muito bom ter o reconhecimento do público e da crítica, o que nos motiva para tais enfrentamentos com um cachê mínimo. Tudo pela arte! Foram, pelo menos, dois anos entre as primeiras leituras do texto original e a montagem definitiva. Um tempo de experiências trocadas, encontros, desencontros, tensões, psico-dramas, êxtases, sublimações e tudo o mais que envolve uma “saudável guerra” de egos entre os atores e a direção do espetáculo. A viagem promete. Muitas horas de viagem nos separam de Sobral, nosso primeiro palco. Nas primeiras tudo é festa: o repertório de piadas imorais é aberto; muitas cervejas são tomadas; entoam-se algumas músicas do espetáculo até que o sono chegue já de madrugadinha. Eu continuo ansioso e insone. Tudo bem. Aproveito o momento para ativar algumas lembranças dessa minha vida que a cada dia se parece mais com um espetáculo sem roteiro pré-escrito, mas representado diuturnamente. O que fiz da minha vida (ou o que a vida fez de mim?) até aquele exato momento em que me vejo apreciando um céu estrelado e uma lua crescente através do vidro fumée da janela de um ônibus com esta trupe da OCA-Cia de Teatro em excursão pelo interior cearense.
Devaneio. Anos 50. Lá em casa, no Araripe/CE, lembro-me bem dos ensaios de pequenas dramatizações que minha mãe fazia com alunos do Grupo Escolar Neomísia Nogueira de Lima, onde era diretora, e, em especial, um número musical do “Meu chapéu tem três bicos, tem três bicos o meu chapéu..., etc.“. Eu achava muito engraçado quando, no final, murmurava-se a música e os gestos se destacavam. Eu tinha apenas quatro anos de idade e já prestava atenção nas “esquisitices” tão próprias da arte.
Em 1959, nossa família (pai, mãe e dez irmãos) migrou para a terra do “meu padim, padre Cícero”. Meu pai fora nomeado inspetor da Sul América Seguros e teve que montar escritório em Juazeiro do Norte. Eu já tinha cinco anos. Com sete tive a minha primeira experiência como “ator”: representei um dos porquinhos daquela fábula que tem o lobo-mau como grande vilão, numa encenação de fechamento do ano letivo no Grupo Escolar Pe. Cícero, onde fiz o primário. Daí em diante, o fascínio pelo teatro tomou conta da minha vida e foi preponderante na formação de minha personalidade. Aquela manhã mágica e numinosa carrego sempre comigo todas as vezes que adentro o palco.
Adolescente ainda, aos quinze ou dezesseis anos, já fazia parte do meu repertório representações de textos de Bertold Brecht, Ariano Suassuna, Luiz Carlos Martins Pena, Millôr Fernandes e outros, ao mesmo tempo em que cantava Geraldo Vandré, Edu Lobo, Chico Buarque e recitava Ferreira Gullar, Tiago de Melo, no Grupo Desafio – integrado por adolescentes que se utilizavam da arte como meio legal de protestar contra os tempos de exceção em que vivia. Ainda, sem negligenciar os afazeres escolares, conseguia ser crooner da banda de baile The Hunters.
Depois, residindo no Crato, com a grande amizade, parceria e a poética de Geraldo Urano escrevi esquetes de teatro com temas pacifistas, representadas em creches e ambientes católicos da cidade. Nos Festivais da Canção do Cariri que juntos idealizamos - celebrações de amor à música, à liberdade e à paz que integravam as diferentes gerações da Região do Cariri, ao Sul do Ceará e levados a efeito pelo Movimento de Juventude e depois pela SCAC - Sociedade de Cultura Artística do Crato - fomos muitas vezes premiados com o grupo O Cacto e com ele o reconhecimento como grande intérprete, ou seja, um ator que sabia cantar.
Outras experiências foram somadas às anteriores. Curiosa, entretanto, foi a minha participação num curso de férias da Pro-Arte, em Teresópolis-RJ em 1974. Dirigido por um diretor carioca, Nino, que fazia parte da Cia.de Procópio Ferreira, pai da fabulosa Bibi Ferreira, fui Yokannan na peça Salomé de Oscar Wilde. A minha interpretação impressionou tanto que recebi convite para aquela companhia de teatro. Eu só tinha vinte anos e não tinha nenhuma autonomia para tomar decisão de tamanho porte; no Recife, trabalhando no BB e cursando Arquitetura (1976), empenhei-me em musicar a peça Canção de Fogo, de Bráulio Tavares; em Fortaleza(1980/81), produzi, montei e atuei, com Javan Franco, o espetáculo Dois Homens na Mina, do colombiano Henrique Buenaventura e com Rosemberg Cariry articulamos o jornal e movimento Nação Cariri; no Rio de Janeiro, administrando com eficácia o meu tempo de trabalho no BB, freqüentava as oficinas para ator no Circo Voador (anos 80) e foi nessa época que eu e minha amiga Sônia Oliveira, estudante de teatro da Unirio, concebemos o texto teatral Sonhos Crescentes e Minguantes numa Noite de Lua Cheia, texto premiado pela SBAT- Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, por merecimento, e representado em algumas praças cariocas.
De volta ao Cariri, mais precisamente ao Crato/CE, já no final dos anos 80, as minhas incursões no teatro se deram nas oficinas que promovemos na OCA - Officinas de Cultura e Artes & Produtos Derivados. Este trabalho resultou na montagem do espetáculo musical Soy Loco por ti América Latina, escrito e protagonizado por mim e que, sem dúvida, teve na performance teatral o grande diferencial e real motivo do tocante sucesso no interior e na capital cearense.
Mais uma vez, ao lançar o meu CD Contemporâneo com um show ainda em circulação, tomo emprestado do teatro a luz, o cenário, a musicalidade e um texto vigoroso que dá amplitude ao meu trabalho de ator. Em novembro de 2004, com o grupo de teatro da OCA, surpreendemos o caloroso público da Mostra SESC de Teatro/2004 na impagável leitura dramática do texto A Terrível Peleja de Zé de Matos contra o Bicho Babau nas Ruas do Crato, de J. Flávio Vieira. Esta atuação favoreceu a publicação do texto e propiciou esta nossa montagem do espetáculo e, por conseguinte, esta pequena tournée.
Estreamos na Mostra Cariri das Artes, novembro 2005, o público ficou surpreso com o formato do espetáculo. Estréia impactante! Fomos aplaudidos de pé e...
Ainda embevecido pelos aplausos, acordei. O ônibus já estacionava de frente ao Teatro São João de Sobral. Ao trabalho!

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